Vendaval na capital paulista retoma discussões sobre modelo atual do setor e levanta dúvidas sobre o processo de concessões de serviços essenciais à inciativa privada
O apagão que deixou milhares de pessoas sem energia em São Paulo colocou em xeque a privatização do setor elétrico. A chuva intensa, com rajadas de ventos de mais de 100km/h, alagou ruas, apagou semáforos, derrubou um sem-número de árvores e deixou 2,1 milhões de endereços sem energia por vários dias. O Ministério Público (MP) instaurou um inquérito civil para investigar possíveis irregularidades na atuação da concessionária Enel.
A empresa, que atua nos estados do Rio de Janeiro, do Ceará e de São Paulo, deixou de operar em Goiás, em setembro, após enfrentar uma série de queixas por quedas de energia e o não cumprimento de metas. O governador Ronaldo Caiado (União Brasil), que à época chegou a entrar com um processo judicial para obrigar a Enel a realizar serviços de manutenção preventiva pouco antes do período chuvoso, voltou a criticar o modelo de concessão à iniciativa privada.
De acordo com o assessor político para o tema de Energia do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Cássio Cardoso, ainda falta investimento no setor. “Desde 2018, quando a Enel assumiu o controle da distribuição, houve uma redução de funcionários em 30%. Isso ocorreu anos após a privatização da distribuição de energia, que ocorreu em 1998”, lembrou.
“Em momentos como o de agora, com muitas quedas de árvores, muitos cabos danificados, a empresa não tem gente suficiente para restabelecer o serviço prestado. Houve o corte de funcionários mesmo com o aumento da demanda, e quando chega um momento como esse, a empresa não dá conta de restabelecer todo o sistema a tempo, gerando um verdadeiro caos na cidade”, acrescentou Cardoso.
O especialista afirmou que os efeitos das mudanças climáticas, que já são devastadores, estão sendo agravados pela privatização do setor elétrico. Isso porque os eventos extremos tendem a aumentar, comprometendo ainda mais a estrutura do setor elétrico brasileiro. “Sem funcionários e sem investimentos no setor, os serviços de geração, transmissão e distribuição de energia ficarão ainda mais comprometidos”, alertou.
O engenheiro elétrico do Instituto Ilumina, Roberto D’Araújo, afirmou que o mesmo aconteceu no caso da privatização da Eletrobras. “A diminuição do quadro de funcionários aconteceu no Brasil inteiro, a própria Eletrobras reduziu o número de funcionários com a privatização. Se a Enel tem menos funcionários, ela não pode, por exemplo, fazer inspeção nas árvores antecipadamente em relação às mudanças climáticas. A prefeitura não pode fazer a poda de árvores sozinha, a distribuidora tem que estar presente. Se isso tivesse sido feito, talvez o choque em relação ao número de consumidores tivesse sido menor e não haveria tanto prejuízo”, avaliou.
Outro problema, de acordo com o engenheiro, seria a fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “A Aneel, que é o órgão regulador, não tem uma equipe para fazer fiscalizações periódicas a essas concessões, identificando as localidades onde há riscos nas redes. O próprio histórico de aplicação de multas a essas concessionárias também mostra isso”, disse.
Cabe à Aneel fiscalizar as concessões, permissões e autorizações de empresas do setor de energia elétrica. Essa função pode ser executada diretamente ou por meio de convênios firmados entre a Aneel e os estados. Procurada pelo Correio, a agência não respondeu às questões sobre a supervisão local das empresas privadas.
Ao demorar praticamente uma semana para restabelecer a energia em todos os lares paulistas afetados, o presidente da Enel Distribuição São Paulo, Max Xavier Lins, em entrevista aos jornalistas, se desculpou pelo atraso, se solidarizando com as vítimas e culpou os erros das previsões dos institutos de meteorologia.
Segundo Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, a frequência de interrupções do sistema elétrico e a duração vem caindo sucessivamente desde 2015. Ele destacou que, de acordo com a regulação da Aneel, os postes estão preparados para enfrentar ventos de até 80km/h e o ocorrido foi mesmo uma ocasionalidade. “Vivemos um acontecimento atípico. Mas, em linhas gerais, eles têm acertado muito mais do que errado. Antes a meta dificilmente era cumprida, de 2015 para cá passaram a cumprir com com larga margem e houve uma melhora, ouso dizer que espetacular”, disse. Sales afirmou ainda que a meta colocada pela Aneel para as empresas é uma das mais rigorosas do mundo. “A literatura econômica já pronuncia claramente que a gestão estatal tende a ser menos eficiente que a gestão privada, por inúmeras razões. Temos um estudo que compara a eficiência do setor elétrico globalmente que aponta a menor eficiência daqueles que ainda são mantidos pelo Estado. No Brasil, temos um fator dramático que é o uso político das empresas estatais”, ponderou.
Perdas do comércio
A Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) estima que o prejuízo do apagão alcança a cifra de R$ 1,3 bilhão nos dias em que os estabelecimentos ficaram parcial ou totalmente às escuras.
O setor de serviços foi o mais prejudicado pela interrupção no fornecimento de eletricidade, estimando que os afetados deixaram de faturar R$ 930 milhões. No comércio, as perdas em vendas atingiram a marca de R$ 465 milhões, considerando apenas as lojas que ficaram sem energia e, consequentemente, precisaram suspender as operações.
O cálculo da FecomercioSP leva em conta o aumento natural no faturamento durante os fins de semana, período no qual os consumidores costumam intensificar suas atividades de compra. No sábado subsequente à tempestade, os serviços perderam R$ 370 milhões em receitas, enquanto o comércio enfrentou um prejuízo de R$ 185 milhões, conforme as estimativas da entidade.
Com informações do Correio Braziliense
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