Preso, Lula escreveu artigo para o prestigioso jornal francês “Le Monde”, sobre suas razões para querer voltar a ser presidente. A Agência Pública, fazendo-se de ombudsman e palmatória do mundo, preferiu buscar pelo em ovo. Ficou ridículo, mas serviu para alimentar o esgoto da direita na internet.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva escreveu um artigo, para o jornal francês Le Monde, com o título Lula: «Pourquoi je veux à nouveau être président du Brésil», publicado em 17 de maio de 2018. O artigo foi traduzido para diversos veículos de comunicação no Brasil com título Lula no ‘Le Monde’: Por que quero voltar a ser presidente.
Em 25 de maio de 2018, a Pública Agência de Jornalismo Investigativo publicou uma matéria com o título Em artigo escrito da prisão, Lula distorce dados. Logo no início, o artigo afirma que:
O Truco – projeto de fact-checking da Agência Pública, que tem verificado o discurso dos presidenciáveis – analisou oito frases do artigo. Foram identificadas distorções em três delas, falta de contexto em outras duas e um exagero. Uma das falas é discutível e a outra traz um dado impossível de provar.
Os julgadores do artigo do ex-presidente poderiam ter escolhido outras frases do artigo, como aquela em que ele afirma liderar as pesquisas para a eleição que se aproxima ou aquela em que diz que ele está preso por uma decisão provisória, com um voto de diferença, da Suprema Corte ou ainda o seguinte parágrafo:
Sete anos depois de deixar a presidência e depois de uma campanha sistemática de difamação contra mim e meu partido, que reuniu a mais poderosa imprensa brasileira e setores do judiciário, o momento do país é outro: vivemos retrocessos democráticos, uma prolongada crise econômica, e a população mais pobre sofre, com a redução dos salários e da oferta de empregos, o aumento do custo de vida e o desmonte de programas sociais.
Esses trechos citados, entre outros, não mereceram o escrutínio do júri que escolheu e pinçou oito frases. Talvez a avaliação final do artigo do ex-presidente mudasse se as frases escolhidas fossem outras, mas nunca se sabe. Fato é que, julgados os oito fatos selecionados, nenhum pode contar com o selo de Verdadeiro do projeto de verificação de fatos da Agência Pública: três foram considerados Distorcidos, dois Sem Contexto, um Exagerado, um Discutível e um Impossível de Provar.
Vamos nos deter um pouco mais sobre quatro desses oito fatos, para não tornar esse texto demasiado longo.
Sobre o número de pessoas que saíram da miséria extrema nos governos do PT
Lula escreveu no artigo para o jornal Le Monde que:
Au cours des huit années durant lesquelles j’ai gouverné ce pays, nous avons eu la plus forte inclusion sociale de l’histoire, qui s’est poursuivie lors du gouvernement de ma camarade Dilma Rousseff. Nous avons sorti de l’extrême misère 36 millions de personnes et permis à 40 millions de rejoindre la classe moyenne. Notre pays a connu un prestige international exceptionnel. En 2009, Le Monde m’a désigné « homme de l’année ». J’ai reçu cet hommagecomme les autres, non comme un mérite personnel, mais comme une marque de reconnaissance de la société brésilienne.
Que foi traduzido para o português da seguinte forma:
Nos oito anos que governei o Brasil, até 2010, tivemos a maior inclusão social da história, que teve continuidade no governo da companheira Dilma Rousseff. Tiramos 36 milhões de pessoas da miséria extrema e levamos mais de 40 milhões para a classe média. Foi período de maior prestígio internacional do nosso país. Em 2009, Le Monde me indicou “homem do ano”. Recebi estas e outras homenagens, não como mérito pessoal, mas como um sinal de reconhecimento da sociedade brasileira.
Uma das afirmações do ex-presidente nesse trecho é: “Nous avons sorti de l’extrême misère 36 millions de personnes”, que pode ser traduzida como: “Tiramos 36 milhões de pessoas da miséria extrema”.
Um documento, de 2016, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), denominado Superação da fome e da pobreza rural: iniciativas brasileiras, afirma em sua página 13, do capítulo Inclusão produtiva e transferência de renda na superação da pobreza rural, que:
Desde 2003 o Brasil já retirou 36 milhões de pessoas da extrema pobreza, sendo 22 milhões desde 2011; e em 2014 o país saiu do mapa da fome elaborado pela FAO (Brasil, 2015, p. 12, 35 e 139) e superou a meta de redução da mortalidade infantil (Caisan, 2013).
A matéria classifica a afirmação “Tiramos 36 milhões de pessoas da miséria extrema.” de Exagerada e afirma que:
Dados oficiais apurados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que, entre 2002 e 2012, o número de brasileiros na faixa de extrema pobreza caiu de 14,9 milhões para 6,5 milhões. O número apresentado por Lula no artigo para o Le Monde provavelmente deriva de um discurso feito por Dilma Rousseff (PT) em 2014.
Parece que o relatório da FAO passou despercebido. Mas, mesmo que tivessem visto, a avaliação do artigo não melhoraria, pois ao descobrirem que há pesquisas que usam critérios diferentes, os julgadores da Pública classificariam a afirmação do ex-presidente como Sem Contexto.
Sobre a taxa de desemprego
Lula escreveu no artigo para o jornal Le Monde que:
Mais mes problèmes sont dérisoires au regard de la souffrance du peuple brésilien. Pour enlever le pouvoir au PT après les élections de 2014, ils n’ont pas hésité à saboter l’économie par des décisions irresponsables du Congrès et à organiser une campagne de dénigrement du gouvernement orchestrée par les médias. En décembre 2014, le taux de chômage était de 4,7 % [de la population active] au Brésil. Il est aujourd’hui de 13,1 %.
Que foi traduzido para o português da seguinte forma:
Mas meus problemas são pequenos perto do que sofre a população brasileira. Para tirarem o PT do poder após as eleições de 2014, não hesitaram em sabotar a economia com decisões irresponsáveis no Congresso Nacional e uma campanha de desmoralização do governo na imprensa. Em dezembro de 2014 o desemprego no Brasil era 4,7%. Hoje está em 13,1%.
Essa afirmação é qualificada como Distorcida pela Pública. De fato houve uma mudança na metodologia para apurar a taxa de desocupação pelo IBGE. No artigo, Lula tomou o primeiro número da Pesquisa Mensal do Emprego e o segundo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Se tomasse os dois números da mesma pesquisa, Lula diria: “No último trimestre de 2014 o desemprego era 6,5%. Hoje está em 13,1%”.
Os dados sobre desemprego citados por Lula no artigo do Le Monde não podem ser comparados. Também não levam em conta a evolução da taxa no período. Ao omitirem isso, criam a falsa impressão de que, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT) – de janeiro de 2015 até seu afastamento, em maio de 2016 –, os números ainda não eram altos. Como a frase se baseia em elementos corretos para mudar a percepção da realidade, foi classificada como Distorcida.
É a discutível conclusão da Pública. O desemprego mais que dobrou nesse período. Essa é a realidade contida na afirmação feita por Lula, bem como na afirmação que teria sido mais correta.
A Pública não para por aqui, quer incluir na análise a parte do segundo de mandato antes da ex-presidente Dilma Rousseff ser deposta. Mas Lula quis exatamente dizer que Dilma não conseguiu governar após dezembro de 2014, com as pautas manipuladas por Eduardo Cunha no Congresso. Isso não parece ser importante para a análise da Pública.
Sobre a sua condenação por “atos indeterminados”
Lula escreveu no artigo para o jornal Le Monde que:
On a saccagé ma maison et celles de mes enfants, on a épluché mes comptes personnels et ceux de l’Institut Lula. Mais ils n’ont trouvé aucune preuve contre moi, aucun crime à me reprocher. Un juge notoirement partial m’a condamné à douze ans de prison pour « faits indéterminés ». Il allègue, faussement, que je serais le propriétaire d’un appartement dans lequel je n’ai jamais dormi, dont je n’ai jamais eu la propriété, la jouissance ni même les clés. Pour tenter de m’empêcher de disputer les élections ou de faire campagne pour mon parti, ils ont dû ignorer des paragraphes de la Constitution brésilienne.
Que foi traduzido para o português da seguinte forma:
Lidero as pesquisas mesmo depois de ter sido preso em consequência de uma perseguição judicial que vasculhou a minha casa e dos meus filhos, minhas contas pessoais e do Instituto Lula, e não achou nenhuma prova ou crime contra mim. Um juiz notoriamente parcial me condenou a 12 anos de prisão por “atos indeterminados”. Alega, falsamente, que eu seria dono de um apartamento no qual nunca dormi, do qual nunca tive a propriedade, a posse, sequer as chaves. Para me prender, e tentar me impedir de disputar as eleições ou fazer campanha para o meu partido, tiveram que ignorar a letra expressa da constituição brasileira, em uma decisão provisória por apenas um voto de diferença entre 11 na Suprema Corte.
Na sentença em que condenou o ex-presidente Luiz Inácio lula da Silva, o juiz Sérgio Moro dedica 8 parágrafos a explicar e justificar a condenação por ato de ofício indiscriminado. Moro e Lula usam exatamente a mesma expressão. A Pública, no entanto, afirma que “Falta, no entanto, contexto à afirmação de Lula”. E explica: “[h]á jurisprudência que dá margem para a interpretação feita por Sérgio Moro do crime de corrupção, de que não é necessária a determinação do ato de ofício indevido para que seja caracterizado o crime de corrupção passiva”.
Em outras palavras, quando alguém se defende usando um argumento sobre o qual “há margem para a interpretação”, está condenando a validade de sua defesa por “falta de contexto”.
Sobre seu nível de aprovação ao final do governo
Lula escreveu no artigo para o jornal Le Monde que:
Rien dans ma vie ne fut facile, mais j’ai appris à ne pas renoncer. Quand j’ai commencé à faire de la politique, il y a plus de quarante ans, il n’y avait pas d’élections dans le pays, pas de droit pour les organisations syndicales et politiques. Nous avons affronté la dictature et créé le Parti des travailleurs (PT), croyant à la démocratie. J’ai perdu trois élections présidentielles avant d’être élu en 2002. J’ai prouvé, avec le peuple, que quelqu’un d’origine modeste pouvait être un bom président. J’ai achevé mes deux mandats avec 87 % d’approbation. C’est le niveau de rejet de l’actuel président du Brésil [Michel Temer], qui n’a pas été élu.
Que foi traduzido para o português da seguinte forma:
Na minha vida nada foi fácil, mas aprendi a não desistir. Quando comecei a fazer política, mais de 40 anos atrás, não havia eleições no País, não havia direito de organização sindical e política.
Enfrentamos a ditadura e criamos o Partido dos Trabalhadores, acreditando no aprofundamento da via democrática. Perdi 3 eleições presidenciais antes de ser eleito em 2002. E provei, junto com o povo, que alguém de origem popular podia ser um bom presidente. Terminei meus mandatos com 87% de aprovação popular. É o que o atual presidente do Brasil, que não foi eleito, tem de rejeição hoje.
A Pública concorda que a pesquisa CNI/Ibope conferiu 87% de aprovação a Lula: “É verdade que Lula terminou o segundo mandato com aprovação recorde de 87%, segundo levantamento encomendado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) ao Ibope em dezembro de 2010. Foi o maior resultado obtido por um presidente”. Mas, como a pesquisa do Instituto Datafolha dava “somente” 83% de aprovação, a Pública cravou: “A checagem dessas informações mostra que o ex-presidente escolheu o número mais favorável possível sobre o seu desempenho pessoal, omitindo outros resultados. Faltou contexto”.
É forçoso concluir que para “ter contexto” seria necessário selecionar o pior número entre as pesquisas sobre sua aprovação e sobre a aprovação de seu governo.
Quem checará os checadores?
Outras matérias da Pública foram analisadas pelo mestre em Comunicação e Semiótica, Leandro Salvador, no artigo Quem checará os checadores? Um breve estudo de caso das checagens realizadas pela Agência Pública – Truco sobre frases dos discursos dos presidenciáveis. Suas avaliações são:
i. Sobre a matéria Os acertos, exageros e erros de Guilherme Boulos, Leandro Salvador avaliou: “Manchete desequilibrada sobre o candidato Guilherme Boulos: um aspecto positivo e dois negativos”.
ii.2 Sobre a matéria Manuela D’Ávila erra dados sobre segurança pública, ele afirmou: “Truco exagera na checagem e produz manchete enviesada sobre Manuela D’Ávila: ela só erra?”
iii. Sobre a matéria Ao falar do Brasil, Ciro Gomes usa dados falsos e exagerados, ele disse: “Checagem exagerada do Truco rende manchete exagerada sobre Ciro Gomes: ele usa dados falsos, mesmo?”
iv. Sobre a matéria Marina Silva usa dados falsos e imprecisos em discurso, Leandro Salvador ponderou que “Agência Pública força a barra para gerar manchete sensacionalista sobre Marina Silva: ela usa dados falsos, mesmo?”
v. Sobre a matéria Os exageros e imprecisões nas falas de Álvaro Dias, ele afirmou: “Truco faz opção por não usar a palavra “falso” em manchete sobre Álvaro Dias, apesar de atribuir-lhe — incorretamente — uso de dado falso na checagem”.
vi.6 Sobre a matéria Em 8 frases, acertos e erros de Geraldo Alckmin, disse ele: “Agência Pública pega leve com Geraldo Alckmin e blinda distorções do candidato com manchete equilibrada: acertos e erros
vii.7 Sobre a matéria Checamos 8 frases de Jair Bolsonaro, Salvador avaliou: “Bolsonaro foi o único candidato cuja manchete e subtítulo não receberam nenhum adjetivo
Como um jogador de truco não passa vontade quando tem cartas, terminaria esse texto com um sonoro: Seis!
Publicado no Jornalista Livres