Corporação apura se itens de luxo recebidos pelo ex-chefe do Executivo e destinados à União foram vendidos para aumentar o patrimônio privado dele. Defesa alega que cliente jamais desviou bens públicos
Defesa diz que Bolsonaro coloca “à disposição do Poder Judiciário sua movimentação bancária” – (crédito: MAURO PIMENTEL/AFP)
A Polícia Federal investiga um suposto esquema de venda ilegal de joias e bens de luxo da União para favorecer o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Os itens, recebidos como presentes oficiais de governos estrangeiros, deveriam integrar o acervo do Estado, mas teriam sido negociados para aumentar o patrimônio privado do ex-chefe do Executivo.
A suspeita é de que a venda de objetos preciosos funcionava por determinação de Bolsonaro e que teria rendido R$ 1 milhão para o ex-presidente. No início da noite de desta sexta-feira, a PF pediu ao STF a quebra de sigilo fiscal e bancário dele. A corporação também solicitou que ele seja ouvido no inquérito.
No relatório enviado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), investigadores detalham como agiam o que chamam de “organização criminosa”.
Com base nos relatos, o magistrado autorizou a PF a deflagrar a Operação Lucas 12:2. Na ação, agentes fizeram buscas e apreensões em endereços de pessoas ligadas ao ex-presidente.
Entre eles, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que está preso; o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, pai do militar; Osmar Crivelatti, braço direito do ex-ajudante de ordens; e Frederick Wassef, ex-advogado da família Bolsonaro.
Conforme a investigação, um dos itens de luxo negociados foi um relógio de platina cravejado de diamantes, recebido por Bolsonaro em viagem à Arábia Saudita, em 2019. Dizem os agentes que o objeto foi levado para os Estados Unidos, em junho do ano passado, e vendido.
A PF sustenta que Mauro Cid viajou de Miami a Willow Grove, na Pensilvânia, para ir a uma loja de relógios e “efetivou a venda do relógio que integrava o kit ouro branco presenteado ao ex-presidente Jair Bolsonaro”.
O acessório teria sido negociado por U$S 68 mil (cerca de R$ 346 mil). De acordo com a PF, o dinheiro foi depositado na conta de Lourena Cid, na Flórida.
Também conforme as apurações, quando o jornal O Estado de S. Paulo noticiou a existência de joias sauditas trazidas ilegalmente pela comitiva de Bolsonaro, Wassef foi acionado. A corporação frisa que ele viajou aos Estados Unidos para recomprar o relógio.
Isso porque o Tribunal de Contas da União (TCU) havia determinado a devolução de todos os itens de luxo pertencentes à União e em poder de Bolsonaro.
Segundo a PF, a ofensiva para incorporar bens públicos ao acervo privado driblou até mesmo o setor do Planalto responsável por catalogar os presentes dados ao presidente da República.
Reflexo
A apuração identificou que o grupo teria comercializado, além do relógio, dois kits de joias da marca suíça Chopard e duas esculturas douradas — um barco e uma palmeira. A corporação não descarta que outros itens tenham sido vendidos irregularmente.
Os objetos, segundo a PF, deixaram o país em aviões da Força Aérea Brasileira e na própria aeronave presidencial.
A PF afirma que um desses kits foi levado aos EUA no mesmo avião presidencial em que Bolsonaro viajou em dezembro do ano passado.
Mauro Cid teria acionado o pai, que mora nos Estados Unidos, para vender os objetos e repassar o dinheiro a Bolsonaro.
Em uma das fotos anexadas no relatório da PF, Lourena Cid aparece no reflexo da caixa de uma das esculturas.
O general também foi alvo de quebra de sigilo bancário nos Estados Unidos. Os agentes identificaram ao menos R$ 4 milhões em movimentações financeiras em conta do militar no exterior.
Em uma das conversas obtidas pela PF, Mauro Cid afirma ao ex-assessor de Bolsonaro Marcelo Câmara que o pai está em posse de US$ 25 mil em dinheiro vivo e que o montante deveria ser entregue ao ex-presidente. A suspeita é de que o valor seja oriundo da venda de bens desviados da União. Na mensagem interceptada pela polícia, o militar indica que estaria com medo de usar o sistema bancário.
“Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em ‘cash’ aí. Meu pai estava querendo, inclusive, ir aí falar com o presidente (…) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (…). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né? (…)”, enfatiza Cid. Câmara responde: “Melhor trazer em cachê”.
Cid também fala sobre as tratativas para a venda das estátuas de uma palmeira e de um barco folheadas a ouro — presentes recebidos pela comitiva em visita oficial ao Barein em 2019. Ele conta a Câmara que não conseguiu vender as peças e que negociava com outro possível comprador.
“(…) Aquelas duas peças que eu trouxe do Brasil: aquele navio e aquela árvore; elas não são de ouro. Elas têm partes de ouro, mas não são todas de ouro (…) Então, eu não estou conseguindo vender. Tem um cara aqui que pediu para dar uma olhada mais detalhada para ver o quanto pode ofertar (…) eu preciso deixar a peça lá (…) pra ele poder dar o orçamento.
Os dois comentam sobre as negociações para levar a leilão um dos kits recebidos na Arábia Saudita com relógio e joias masculinas. “(…) o relógio aquele outro kit lá vai, vai, vai pro dia sete de fevereiro, vai pra leilão. Aí vamos ver quanto que vão dar (…)”, diz o tenente.
“Dá pena”
Em uma mensagem interceptada pela corporação, com data de 13 de fevereiro, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro lamenta, com Câmara, a interrupção da negociação, após o caso das joias vir à tona. “Só dá pena porque estamos falando de 120 mil dólares”, ressalta. O ex-assessor alerta: “O problema é depois justificar e para onde foi. De eu informar para a comissão da verdade. Rapidamente vai vazar”.
A defesa de Bolsonaro destacou, em nota, que “voluntariamente e sem que houvesse sido instalada, peticionou junto ao TCU — ainda em meados de março, p.p. —, requerendo o depósito dos itens naquela Corte, até final decisão sobre seu tratamento, o que de fato foi feito”, disse. “O presidente Bolsonaro reitera que jamais apropriou-se ou desviou quaisquer bens públicos, colocando à disposição do Poder Judiciário sua movimentação bancária.”
O Correio contatou Frederick Wassef, mas não recebeu resposta. Os advogados de Osmar Crivelatti não foram localizados. A defesa de Mauro Cid disse que se manifestará nos autos.
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