Cadete Renan Mendonça Borges Gama faleceu durante um treinamento na Aman, em 2013. Na época, Mauro Cid, então capitão, era um dos instrutores
Justiça Militar cita ‘dignidade humana’ ao rejeitar denúncia contra Mauro Cid sobre morte de cadete por maus-tratos
Mateus Coutinho, Brasil de Fato – Em 4 de novembro de 2014, os ministros do Superior Tribunal Militar, a última instância do Poder Judiciário Militar, se reuniram em uma sessão de julgamento extraordinária em Brasília (DF) para julgar cinco militares acusados de maus-tratos a um cadete, que morreu após participar de um treinamento na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
Entre os acusados estava o então capitão Mauro Cid, que anos mais tarde se tornaria um dos assistentes mais próximos de Jair Bolsonaro na Presidência. Ele e os outros quatro militares, que eram os responsáveis pelo treinamento em questão, foram acusados de maus-tratos.
Os ministros decidiram por maioria que abrir uma ação penal contra os acusados seria “atentatório” à “dignidade humana” dos instrutores.
“Impor o ônus aos acusados de responder a uma ação penal, quando em juízo preliminar se constata ausência de justa causa, soa atentatório aos mais básicos direitos constitucionais individuais, dentre eles o da dignidade humana”, afirmou o ministro José Barroso Filho em seu voto, que foi seguido pela maioria de seus pares durante o julgamento.
Naquele dia, o tribunal entendeu que não havia justa causa, isto é, elementos mínimos suficientes, para abrir uma ação penal contra os cinco militares acusados pelo Ministério Público Militar de maus-tratos ao cadete que morreu após passar mal várias vezes durante o treinamento. Mauro Cid era instrutor de artilharia à época, sendo um dos responsáveis por acompanhar o exercício dos cadetes.
O Brasil de Fato teve acesso aos autos do julgamento, uma das acusações mais polêmicas enfrentadas por Cid antes de ele se tornar o ajudante de ordens de Jair Bolsonaro pelos seus quatro anos de governo. O julgamento foi a última tentativa do Ministério Público Militar de punir na Justiça os responsáveis pelo treinamento. A denúncia expõe relatos de humilhação e sofrimento do cadete Renan Mendonça Borges Gama, na época com 23 anos e que estava no terceiro ano do curso de Artilharia.
Pelo Código Penal Militar, que define os crimes e as punições para os atos ilegais cometidos por militares, o crime de maus-tratos tem pena prevista de 2 a 10 anos de prisão em caso de morte da vítima de ordens.
Desmaios, alucinações e uniforme molhado – Ao analisarem o caso, a maioria dos ministros do STM, não viu uma relação direta entre o mal-estar sofrido pelo cadete ao longo do treinamento, que incluiu pelo menos três desmaios e alucinações, e a morte de Gomes no hospital Samer, em Resende (RJ), onde ele foi internado logo após concluir o treinamento.
Na denúncia, porém, o MPM reuniu vários elementos acusatórios, entre eles: depoimentos de 11 cadetes que estavam no treinamento; o depoimento de um capitão de artilharia; um laudo pericial sobre a morte; o depoimento do médico do hospital onde o cadete morreu; e o laudo do próprio hospital.
O documento produzido pelo hospital aponta que a causa da morte foram complicações decorrentes de uma condição relacionada à realização de exercícios intensos: a rabdomiólise, síndrome em que fibras musculares se rompem e liberam substâncias prejudiciais no sangue, que podem desencadear desfechos graves.
“É indiscutível que o cadete Renan Mendonça Borges Gama desmaiou diversas vezes, em diversos momentos, e queixou-se que não estava passando bem, a ponto de ter que ser carregado por um dos monitores em um determinado trecho”, diz a denúncia do Ministério Público Militar. “E ainda assim, todas essas circunstâncias não foram suficientes para que a médica, ora a 5ª denunciada, bem como todos os demais denunciados, promovessem seu afastamento do treinamento”, segue a acusação.
Renan estava entre os 400 cadetes da Aman que participaram do Estágio de Patrulhas de Longo Alcance com Características Especiais, realizado entre os dias 19 e 24 de setembro de 2011. Trata-se de um exercício em que os cadetes simulam diferentes situações de combate durante um trajeto entre várias fazendas pelo interior do Rio e São Paulo. No exercício, eles são submetidos a situações de estresse, desgaste físico e escassez para simular situações de conflito real no qual os militares precisam tomar decisões sob pressão.
Foi na subida de um pico no trajeto do treinamento que Renan Gama, também chamado de cadete 77, começou a passar mal de forma mais intensa e a desmaiar duas vezes. Ele ficou três minutos desacordado na segunda vez e precisou ser reanimado pelos companheiros. Mesmo depois de acordar e tomar soro, ele pediu para descansar 20 minutos e só conseguiu voltar a andar rumo ao ponto de controle número três (o percurso completo contava com cinco pontos de controle) com apoio dos outros cadetes, que acabaram carregando seu equipamento.
Mesmo chegando ao ponto de controle, porém, os responsáveis pelo treinamento negaram o pronto atendimento médico ao cadete, segundo os depoimentos. Ao invés disso, ainda de acordo com os relatos, o então major Bernardo Romão Correa Netto chamou o cadete de fraco, “playboy” e “filhinho de papai”, e determinou que os demais cadetes esvaziassem seus cantis de água no colega. Além disso, ele teria dito que o cadete só poderia receber atendimento médico se estivesse carregando o próprio equipamento e conseguisse ir andando sozinho até o posto médico, o que, segundo relatos dos demais cadetes, ele não estava conseguindo fazer.
Em depoimento no Inquérito Policial Militar para investigar a morte, o então cadete Caio César Alexandre Neves de Oliveira afirmou que Cid teria presenciado a situação e impedido que fosse trocado o uniforme de Renan Gama. “Disse que o cadete Gama estava encharcado, e que o capitão Cid não permitiu a troca do uniforme do cadete Gama”, diz trecho do depoimento apresentado pelo MPM.
Em outro ponto do depoimento, Oliveira afirma que não presenciou atendimento médico ao colega no posto de controle 3 e que, neste posto, “foi chamado pelo Capitão Cid, junto com o cadete Rodrigues, até uma posição em que estavam o cadete Gama e a médica, e que esta não falou nada depois que o capitão Cid falou que o cadete Gama continuaria no exercício”.
Outro cadete ouvido no âmbito da investigação, Luiz Henrique Bertoni Barbosa, chegou a afirmar que a médica do ponto de controle 3, a tenente Nathalia Knopp, teria retirado o uniforme de Renan e dito que “a única coisa que ele apresentava eram escoriações nas costas”.
“Disse a tenente Knopp, que na sua opinião, que (Renan) não estava consciente, e ela respondeu que ele estava consciente sim, que não queria falar e que, segundo ela, seria fraqueza psicológica dele”. Os relatos da situação dramática de Renan, feitos pelos colegas, seguem até o ponto final do exercício, quando os cadetes embarcaram em um trem de volta para a sede da Aman, em Resende. Nesta ocasião, um outro cadete, chamado Tulio Moreira, relatou em seu depoimento na investigação ter ouvido o cadete pedir ajuda a Cid.
“Foi ver o 77 novamente dentro do trem, onde o depoente ouviu o 77 falar com o capitão Cid: ‘Instrutor, estou passando mal!’, e o capitão Cid respondeu ‘estagiário, agora não posso fazer mais nada, a equipe médica já partiu'”, afirmou Tulio Moreira em seu relato.
Na época do treinamento, Cid participou da instrução no posto de oficial de Operações da Seção de Instrução Especial da Aman, marcando presença junto aos cadetes na chegada das missões todas as noites. Para o MPM, foi nessa condição que Cid teria presenciado o mal-estar do cadete Renan Gama e, ainda assim, decidiu mantê-lo no exercício.
A denúncia contra Cid e os demais militares foi apresentada ainda em 2013 na Justiça Militar de primeira instância no Rio de Janeiro. O juiz responsável por analisar o caso nessa etapa rejeitou a acusação levando em conta que o laudo de necropsia do Instituto Médico Legal do Rio não atribuiu a causa da morte à rabdomiólise. Além disso, ele entendeu que não haveria relação direta entre o treinamento que levou aos desmaios e alucinações do cadete e sua morte no hospital dias depois.
“Ademais, abstraindo-se, por claro, o depoimento dos cadetes, as demais provas não permitem a conclusão de que fosse previsível, objetivamente, aos denunciados, vislumbrar o quadro fisiológico apresentado pelo cadete no momento dos exercícios, nem se poderia, em decorrência, exigir uma diligência maior, por parte dos militares envolvidos no adestramento”, assinalou o juiz de primeira instância.
Na sequência, o MPM recorreu da decisão para o juiz-substituto, que negou o recurso do Ministério Público. Os investigadores, então, recorreram ao STM em 2014. O tribunal, porém, chancelou a decisão de recusar a denúncia.
Tese de advogado e doenças contagiosas – Para recusar o pedido do MPM, os ministros chegaram a citar uma tese do advogado e doutor em direito Cezar Bittencourt, que assumiu em 2023 a defesa de Mauro Cid nas investigações envolvendo irregularidades cometidas durante o governo Bolsonaro. Foi Bittencourt o responsável por conduzir a negociação do acordo de colaboração e Cid com a Polícia Federal.
Os ministros do STM citaram o trecho da obra Tratado de Direito Penal, de Bittencourt, que trata de condições que podem levar a um determinado resultado, mas que não têm relação direta com a conduta dos investigados, as chamadas “concausas”. “Qualquer que seja a concausa – preexistente, concomitante ou superveniente – poderá produzir o resultado de forma absolutamente independente do comportamento que examinamos”, diz o trecho da obra utilizado no voto do ministro José Barroso Filho.
Em sua manifestação, que foi utilizada para o acórdão do tribunal, o ministro também levou em conta o laudo do IML, que apontava para a suspeita de doenças infecciosas como a causa da morte e citava o fato de o cadete estar com dez carrapatos no corpo, que poderiam transmitir doenças, como a febre maculosa.
Com isso, o ministro entendeu que não havia relação entre os esforços físicos do cadete e o óbito dele dias depois. “Considerando a teoria da equivalência das condições, impõe-se a conclusão de que os esforços físicos a que foi submetido o cadete não guardam relação de causalidade com sua morte, tampouco a conduta dos instrutores durante o estágio”.
Na denúncia, o MPM pediu para ser desconsiderado o laudo do IML, por ele não apresentar uma conclusão clara sobre a causa da morte e por indicar suspeitas de doenças infecciosas que não acometeram nenhum outro cadete presente no exercício. Antes de apresentar a denúncia, o Ministério Público chegou a solicitar à Justiça Militar uma perícia feita por um perito judicial, que era um médico e tenente-coronel próprio Exército, o que foi autorizado.
O perito Levi Inimá de Miranda atribuiu a causa da morte a complicações decorrentes de rabdomiólise e rechaçou a hipótese de doenças infectocontagiosas, como as indicadas no relatório do IML. “Sequer foi realizado um inquérito epidemiológico por aquela Academia Militar. E também, dentre o universo de cadetes que participaram daquela instrução, não é crível que somente ele fosse acometido de doença infectocontagiosa (doença de Lyme ou Borreliose; Tifo Murino; Febre Maculosa brasileira). Os demais cadetes nada apresentaram”, diz trecho da perícia.
O perito ainda questionou o fato de que nenhum dos médicos militares que levaram o cadete até o hospital após o treinamento se preocupou em levar os carrapatos para serem estudados para se averiguar se estavam contaminados com bactérias que poderiam ter infectado o cadete. “Havia 10 carrapatos e ninguém fez nada? Ninguém procurou saber se algum daqueles carrapatos estava infectado com Rickettsia (tipo de bactérias presentes em carrapatos e piolhos que podem causar doenças em humanos)?”, questionou.
No documento, o perito também destacou que tanto a Fundação Oswaldo Cruz quanto a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro e a Secretaria Municipal de Saúde de Resende apontaram que não houve nenhum registro de suspeita de febre maculosa naquele município entre 2011 e 2012. Ainda assim, no acórdão, os ministros do STM criticaram o linguajar do perito do Exército e seguiram o entendimento do laudo do IML.
“Analisando o conjunto probatório apresentado, conclui-se ser suficiente o laudo dos peritos oficiais, por seus argumentos técnicos, para caracterizar a causa mortis por doença infecciosa associada às ricketticioses, mais especificamente a febre maculosa brasileira, evidenciada pela presença de carrapatos no corpo do falecido cadete e por outros sintomas apontados no exame histopatológico”, segue o voto do ministro José Barroso Filho.
‘Não é normal que ocorram óbitos’ – O único ministro do STM que destoou dos demais foi Artur Vidigal de Oliveira, que era o relator do recurso do MPM e que atua até hoje na corte. Ele entendeu que a denúncia apresentava os elementos mínimos para se abrir uma ação penal e apurar todas as acusações presentes na denúncia.
“Não é normal que ocorram óbitos em treinamentos, mesmo levando-se em consideração o alto grau de dificuldade pelo qual os exercícios se desenvolvem. É imperiosa a profunda investigação dos fatos. Estamos tratando da morte de um cadete da respeitada Academia Militar das Agulhas Negras”, assinalou o ministro.
Ele ponderou ainda que a abertura da ação penal não seria uma pré-condenação, e que no curso da ação a Justiça Militar poderia entender que não havia elementos suficientes para se condenar os militares. “Não receber a denúncia representa a impossibilidade de os militares denunciados comprovarem suas inocências. Restará, para sempre, nas suas respectivas carreiras, essa mácula, e não mais poderão justificar-se quanto ao delito que ora lhes é imputado”, seguiu o ministro.
Ele ainda lembrou em seu voto que os vários cadetes ouvidos ao longo do inquérito policial militar por terem presenciado a situação viriam a se tornar futuros comandantes. “A grande quantidade de cadetes ouvidos em IPM, que presenciaram a situação, é motivo suficiente para a promoção da ação penal, mesmo porque serão esses os futuros comandantes do Exército Brasileiro que terão a responsabilidade de supervisionar as atividades nos quartéis e evitar que esse tipo de fato ocorra”. A preocupação, porém, não foi suficiente para mudar o voto dos demais ministros do STM.
Além de rejeitarem o recurso do MPM, os ministros do STM foram unânimes em decidir encaminhar o caso para o comandante do Exército na época para avaliar se caberiam eventuais punições administrativas, mesmo com o arquivamento do caso. Procurado, o Exército informou por meio de nota que “o Comando do Exército recebeu o Acórdão do julgamento em questão em 2014, no qual o STM não deu provimento à denúncia. Por conseguinte, as medidas administrativas e disciplinares foram adotadas em conformidade com a legislação vigente”.
A reportagem perguntou por e-mail se algum dos militares denunciados foi punido administrativamente e qual teria sido a punição, mas não obteve resposta. Se a instituição se manifestar, o texto será atualizado.
O Brasil de Fato também entrou em contato com o advogado Rodrigo Roca, que defendeu Mauro Cid no processo no STM. O defensor informou que não poderia comentar o caso. “Não poderia comentar sobre o caso, mesmo tendo sido do meu escritório, em razão de ele estar sob os cuidados de outro profissional atualmente”, afirmou o advogado.
Procurado, o advogado Cezar Bittencourt, que representa atualmente Mauro Cid, também não se manifestou. Em relação aos militares Bernardo Romão Correa Netto e Nathalia Knopp, a reportagem entrou em contato com o escritório do advogado que os representou no caso. O profissional que atuou na defesa, porém, faleceu em 2021.
Com informações do Brasil 247
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