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Como a World Central Kitchen serve à agenda genocida de Israel

O ataque precisamente direcionado de Israel a um comboio de veículos, em que assassinou sete funcionários da World Central Kitchen, gerou indignação e compaixão em todo o mundo pela organização sem fins lucrativos cuja missão declarada é alimentar pessoas em circunstâncias difíceis.

Não há justificativa para o assassinato dessas pessoas por Israel, e elas e suas famílias merecem a mesma responsabilidade e justiça devidas às dezenas de milhares de vítimas palestinas do genocídio contínuo de Israel.

Um efeito imediato do ataque é que vários grupos humanitários suspenderam as operações em Gaza, uma medida que visa garantir a segurança de seu pessoal, mas que só pode exacerbar a fome deliberada causada por Israel.

Uma suposição razoável é que esse era o objetivo de Israel: garantir que ninguém em Gaza coma, de acordo com o anúncio feito por Tel Aviv logo no início de seu genocídio de que estava impondo um cerco total, bloqueando todos os alimentos, água, remédios e outros meios de sustento para os 2,3 milhões de pessoas que o ministro da defesa israelense, Yoav Gallant, chamou de “animais humanos”.

IMPONDO A VONTADE DE ISRAEL

No entanto, o relacionamento de Israel com a World Central Kitchen é mais complicado e gera muitas suspeitas razoáveis entre os palestinos.

A principal questão é por que Israel – apesar de ter matado os funcionários da World Central Kitchen, do famoso chef José Andrés, que é totalmente pró-Israel —  sabota outros esforços de ajuda, especialmente os da UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinos.

Discuti esse assunto com meus colegas Nora Barrows-Friedman, Jon Elmer e Asa Winstanley no vídeo acima, extraído da transmissão ao vivo da Electronic Intifada desta semana.

Neste artigo, desenvolvo e documento algumas das observações que fizemos.

No início de março, o mesmo Yoav Gallant, que tomou a decisão de matar Gaza de fome, deu boas-vindas aos planos liderados pela World Central Kitchen para começar a levar ajuda ao território por meio de um corredor marítimo supervisionado por Israel.

“Levaremos a ajuda por meio de uma rota marítima coordenada com os EUA no aspecto humanitário e de segurança, com a assistência dos Emirados Árabes Unidos no aspecto civil e a inspeção adequada no Chipre, e levaremos mercadorias importadas por organizações internacionais com a assistência estadunidense”, explicou Gallant.

As operações da World Central Kitchen em Gaza foram de fato patrocinadas pelos Emirados Árabes Unidos.

“O processo foi projetado para levar ajuda diretamente aos residentes e, assim, continuar o colapso do governo do Hamas em Gaza”, afirmou Gallant.

CAVALO DE TROIA

Tel Aviv e Washington veem a World Central Kitchen como uma ferramenta para atingir o objetivo de longa data de Israel de desalojar e destruir a UNRWA e instalar um novo regime controlado por Israel em Gaza.



A UNRWA é a única organização com infraestrutura em Gaza para atender às necessidades de toda a população se pudesse trabalhar sem impedimentos. Mas não é isso que Israel e os Estados Unidos querem.

Nas últimas semanas, a mídia israelense informou que Israel está “pressionando pelo estabelecimento de uma força internacional de manutenção da paz para proteger a Faixa de Gaza e facilitar a entrega de ajuda humanitária”.

Mas isso é apenas um disfarce para os chamados planos do “dia seguinte”, que visam a reimpor a ocupação israelense permanente na Faixa de Gaza.

De acordo com esse plano, “a força seria composta por tropas de três países árabes diferentes e não nomeados” e seria “gerenciada pelos Estados Unidos”.

“A força provavelmente estaria armada para manter a lei e a ordem e trabalharia com os habitantes de Gaza que não tenham ligações com o Hamas, ostensivamente figuras ligadas à Autoridade Palestina”, de acordo com o The Times of Israel.

O objetivo é criar um regime colaborador semelhante à Autoridade Palestina apoiada por Israel e liderada por Mahmoud Abbas na Cisjordânia ocupada.

Nesse cenário, uma organização “humanitária” aprovada pelos EUA e por Israel, como a World Central Kitchen, é o cavalo de troia perfeito para ajudar a trazer uma nova liderança colaboracionista para Gaza.

Poucos dias antes de Israel assassinar sua equipe, a World Central Kitchen tentou se distanciar de tais esquemas israelenses-estadunidenses.

“A WCK não está promovendo uma agenda política e não está substituindo nenhuma das outras organizações em Gaza, apesar das reportagens e alegações que sugerem o contrário”, afirmou o grupo em 28 de março.

Mas não é isso que o registro mostra.

DESTRUINDO A UNRWA

Primeiro, por que Israel quer se livrar da UNRWA?

Israel demoniza a agência da ONU há anos, apesar do fato de que ela livra Israel da grande responsabilidade e do custo de atender às necessidades básicas de saúde, educação e humanitárias de milhões de refugiados palestinos que vivem sob sua ocupação militar e sistema de apartheid.

Israel acredita que destruir a UNRWA eliminará a proteção legal e o foco internacional no direito de retorno dos refugiados palestinos.

Contrariando a lei internacional, Israel impede o retorno de milhões de refugiados palestinos e seus descendentes etnicamente limpos de seus lares apenas com base no argumento racista de que eles não são judeus.

O governo Biden evidentemente compartilha o objetivo de Israel de eliminar a UNRWA.

Em janeiro, a Casa Branca suspendeu o financiamento dos EUA para a agência – e se recusa a restaurá-lo – sob o pretexto de alegações israelenses infundadas contra uma dúzia de milhares de funcionários palestinos da UNRWA em Gaza.

FAVORECIDA POR ISRAEL

Tudo isso explica por que, mesmo após o ataque mortal contra a equipe da World Central Kitchen, Israel se esforçou para elogiar o trabalho do grupo como “fundamental”.

Começa a fazer sentido o fato de a World Central Kitchen ter recebido tratamento preferencial tanto dos Estados Unidos quanto de Israel, mesmo quando Israel continua a bloquear sistematicamente outras ajudas humanitárias para Gaza, especialmente da UNRWA.

Esse tratamento preferencial inclui a ajuda do exército israelense à World Central Kitchen para construir um cais para descarregar navios na costa de Gaza usando entulho das casas dos palestinos bombardeados por Israel.

O projeto do píer apoiado por Israel “foi um marco em um empreendimento que as autoridades ocidentais esperam que desempenhe um papel na redução da privação de alimentos no enclave”, informou o The New York Times no mês passado, acrescentando que “a operação foi descrita como um projeto piloto para a abertura mais ampla de um corredor marítimo para abastecer o território”.

“Cada passo foi realizado com a permissão dos militares israelenses”, informou o Times, citando Sam Bloch, diretor de resposta a emergências da World Central Kitchen.

Israel não permitiu que ninguém, além da World Central Kitchen, trouxesse ajuda por mar e, no passado, Israel atacou e massacrou grupos civis que tentavam fazer isso.

E esse “empreendimento” ou “projeto piloto” só faz sentido em um contexto em que a UNRWA está sendo eliminada.

Afinal, se essas autoridades “ocidentais” – leia-se americanas – realmente quiserem que a ajuda chegue aos palestinos famintos, a maneira imediata de fazer isso é Israel parar de matá-los de fome e permitir que a UNRWA – com sua infraestrutura já existente – faça seu trabalho.

Também é notável que Israel tenha facilitado a entrada de alguns caminhões da World Central Kitchen em Gaza a partir do Egito, mesmo quando Israel retém milhares de outros.

Ao mesmo tempo em que ajuda os esforços altamente divulgados da World Central Kitchen, Israel tem atacado regularmente caminhões de ajuda e já assassinou mais de 500 palestinos que ajudavam na distribuição ou esperavam pela ajuda.

No entanto, isso não gerou uma fração do clamor internacional como o ataque à World Central Kitchen.

Um artigo recente do The New Humanitarian discute como a COGAT, o braço burocrático da ocupação militar de Israel, facilitou o trabalho da World Central Kitchen às custas de outras agências humanitárias.

“Embora os trabalhadores humanitários que conversaram com a The New Humanitarian tenham concordado que qualquer alimento entregue a Gaza – onde toda a população corre o risco de passar fome – é uma coisa boa, eles perguntaram por que a COGAT permitiu que uma agência, a World Central Kitchen, entregasse uma quantidade relativamente pequena de alimentos, enquanto negava amplamente a ONU e outras agências”, afirma a publicação.

O artigo também observa como Israel está deliberadamente marginalizando a ONU.

“Há um desejo claro de criar uma estrutura alternativa sobre a qual Israel tenha uma supervisão e um controle mais diretos”, disse Jesse Marks, funcionário sênior da organização beneficente Refugees International, ao The New Humanitarian.

CHEF FAMOSO APOIA GENOCÍDIO ISRAELENSE

Após o assassinato dos empregados da World Central Kitchen, o seu fundador e proprietário, o famoso chef José Andrés, disse que “eles foram alvejados sistematicamente, carro por carro”.

Andrés também disse que o ataque de Israel a Gaza “não é mais uma guerra contra o terrorismo”, mas sim uma “guerra contra a própria humanidade”.

A World Central Kitchen também reagiu com frieza à autoinvestigação preliminar de Israel sobre seu ataque à equipe do grupo.

Mas, mesmo com essa mudança de tom, Andrés não pode ocultar seu apoio inicial e duro à campanha de extermínio de Israel em Gaza, mesmo quando outros estavam alertando sobre o genocídio que se desenrolava.

Em 16 de outubro, quando Israel já havia matado 2.750 palestinos e ferido quase 10.000 em pouco mais de uma semana, Andrés reagiu com raiva à ministra do governo espanhol Ione Belarra quando ela denunciou o massacre como um genocídio.

Um dia antes, 800 acadêmicos e profissionais de direito internacional, incluindo proeminentes estudiosos do Holocausto, publicaram uma declaração para “tocar o alarme sobre a possibilidade de o crime de genocídio ser perpetrado pelas forças israelenses contra os palestinos na Faixa de Gaza”.

Apesar disso, Andrés justificou de forma inflexível o banho de sangue em Gaza como sendo Israel “defendendo seus cidadãos” e exigiu que o primeiro-ministro da Espanha demitisse Belarra por seus comentários.

 ANDRÉS DÁ CONSELHOS DE GUERRA

Embora agora critique mais abertamente Israel, Andrés continua a apoiar o ataque a Gaza.

Em um artigo de opinião publicado no New York Times em 3 de abril, Andrés mantém a linha de que a operação da resistência palestina que teve como alvo principal e derrotou a divisão de Gaza do exército israelense em 7 de outubro foi “o pior ataque terrorista da história [de Israel]”.

Em nenhum momento do artigo Andrés pede um cessar-fogo, em vez disso, elogia Israel e dá conselhos sobre como realizar o ataque de uma maneira que ele presumivelmente consideraria mais aceitável.

“Israel é melhor do que a forma como esta guerra está sendo conduzida. É melhor do que bloquear alimentos e remédios para os civis”, afirma ele, ignorando que a grande maioria do público judeu israelense apoia a privação de ajuda humanitária à população de Gaza.

“Não se pode vencer essa guerra matando de fome uma população inteira”, aconselha Andrés a seus amigos israelenses.

Ele deixa claro que seu objetivo é que Israel “vença” – seja lá o que isso signifique – a resistência palestina, que luta pela libertação de seu povo contra uma potência colonial que o desapropriou, ocupou, assassinou e perseguiu por oito décadas.

Em outras palavras, a linha de José Andrés não é a de um verdadeiro humanitário, mas sim a do governo Biden, que se recusa a pedir um cessar-fogo imediato e permanente – a única coisa que faria mais do que qualquer outra coisa para salvar a vida das pessoas em Gaza.

Isso não é nenhuma surpresa, dada a proximidade pessoal de Andrés com a Casa Branca de Biden.

PRÓXIMO AO GOVERNO DOS EUA

Após o assassinato israelense dos trabalhadores da World Central Kitchen, o presidente Joe Biden ligou pessoalmente para Andrés para expressar suas condolências e seu apoio.

Em contraste, não houve nenhum relato de Biden ligando para o chefe da UNRWA, mesmo depois de Israel ter matado mais de 175 funcionários dessa agência – o maior número de funcionários da ONU mortos durante qualquer conflito na história.

E no final de fevereiro, mais de um mês depois que a Corte Internacional de Justiça concluiu que Israel estava plausivelmente cometendo genocídio em Gaza – algo que Tel Aviv só pode fazer devido às armas fornecidas pelos Estados Unidos – Andrés apareceu na Casa Branca para promover uma iniciativa política do governo Biden.

Essa é apenas a ponta do iceberg da colaboração de Andrés com o governo Biden e o governo dos EUA.

Conforme relata o The Grayzone, Andrés até mesmo elogiou o Secretário de Estado Antony Blinken em fevereiro, apesar de Blinken estar entre os apoiadores mais ferrenhos do genocídio de Israel.

Mas será que todo tipo de ajuda não ajuda?

A World Central Kitchen é muito boa em promover seus esforços em Gaza – uma campanha de relações públicas calculada para provocar uma resposta emocional, bem como doações para uma organização que arrecadou mais de US$ 500 milhões somente em 2022.

Muitos observadores razoáveis e compassivos dirão que, se a World Central Kitchen está realmente levando comida à boca e ao estômago dos palestinos em Gaza, então ela está fazendo um bom trabalho, porque em uma crise como essa, cada pedacinho ajuda.

Isso seria verdade se a World Central Kitchen não estivesse sendo usada como parte de um esforço para substituir um mecanismo muito mais abrangente e eficaz para atender às necessidades básicas: A UNRWA.

Não importa quantas refeições a World Central Kitchen sirva, isso é uma gota no oceano.

Em 28 de março, a World Central Kitchen afirmou que, durante 175 dias de operações em Gaza, serviu 42 milhões de refeições e agora opera 68 “cozinhas comunitárias”.

Isso pode parecer impressionante, mas há 2,3 milhões de pessoas em Gaza. Se cada uma delas precisar de três refeições por dia, isso significa que a população em geral precisa de quase sete milhões de refeições por dia ou 49 milhões de refeições por semana.

Atualmente, no norte de Gaza, onde a fome imposta por Israel é a mais grave, as pessoas estão sobrevivendo com uma média de apenas 245 calorias por dia, cerca de um décimo de suas necessidades.

Para aliviar essa situação, é necessário um aumento maciço de ajuda, algo que não pode acontecer sem um cessar-fogo e o acesso desimpedido da ONU e de outras agências humanitárias ordenado pela Corte Internacional de Justiça na semana passada.

A objeção, portanto, não é contra o fato de a World Central Kitchen operar em Gaza ou servir alimentos lá, mas sim contra o fato de a organização ser usada – e permitir que seja usada – como um disfarce para desmantelar a UNRWA e impor um novo regime israelense-estadunidense em Gaza.

Se for permitido que esse plano seja bem-sucedido, cada refeição servida pela World Central Kitchen – e promovida em suas contas de mídia social – ajudará a ocultar os muitos outros palestinos que passarão fome porque a ajuda efetiva em grande escala está sendo deliberadamente impedida.

A destruição da UNRWA significaria não apenas mais fome e morte em massa – como se isso já não fosse ruim o suficiente – mas um dano permanente aos direitos dos palestinos em geral.

É por isso que a BADIL, uma organização palestina que promove os direitos dos refugiados, está pedindo o financiamento da agência da ONU como uma forma de “resistir à dominação colonial”.

Ao colaborar com Israel e os Estados Unidos em detrimento de mecanismos de ajuda maiores e mais eficazes, a World Central Kitchen está servindo à sua agenda genocida.

*Ali Abunimah é cofundador do The Electronic Intifada e autor de The Battle for Justice in Palestine, lançado pela Haymarket Books.

Tradução: Tali Feld Gleiser, de Desacato.info Revisão: Jair de Souza

Com informações do VioMundo

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