DEPOIS DE DEZ DIAS trabalhando na montagem de uma exposição na região da Luz, em São Paulo, me preparava para voltar para casa quando, em uma espiada ou outra no celular, vi aparecer na tela uma capa da revista Veja SP. Nela, estavam cinco nordestinos que, morando naquela cidade, “venceram na vida”. Eles riam sob uma luz quente, cercados por cactos e uma indefectível parede de barro, um cenário que simula, em versão cool, a terra rachada e seca sobre a qual nos acostumamos a ver – no livro, na novela, no cinema – ossadas de bichos mortos de sede.
“Eu só sabia carregar saco de cimento e limpar sujeira” diz, lá no texto, o piauiense Aldenir Lemos. “Dormia sobre um cobertor e comia uma vez por dia”, relata Renata França, baiana que, segundo a revista, “transformou a miséria em fortuna com o toque das mãos”.
Aquilo me fez lembrar de uma piada clássica entre jornalistas: ela diz que um cachorro mordendo um homem não é notícia, mas, se o homem morder o cachorro, temos uma boa manchete. Pois bem: em pleno século 21, nordestinos “de sucesso” são, para parte da imprensa nacional e não só a Vejinha, o homem mordendo o cachorro.
“Nenhuma imagem é inocente”, diz o artista chileno Alfredo Jaar, profundo pesquisador do discurso da mídia.
A edição causou um considerável debate, nas redes sociais, sobre geografias, estereótipos, preconceitos. Mas em lugar de falar especificamente dessas questões, quero focar naquilo que as sustenta e mantém, a força-motriz que continua gerando discursos anacrônicos como o da Veja SP e seu pau-de-arara renovado com filtros de Instagram: o horror ao pobre.
O cimento, a sujeira, a pouca comida e a miséria ali evocados não falam exatamente do Nordeste, mas do que o Nordeste, no imaginário do país, representa: a pobreza. É ela a grande derrotada na narrativa heroica desenhada para os rapazes e moças que contam suas sagas no semanário. Eles estão a anos-luz daquela gente que carrega sacos de cimento, que limpa ruas, que limpa banheiros. Dormem em camas confortáveis e se alimentam bem. Eles chegaram “lá”.
Discurso anacrônico: reportagem da Veja SP mostra cinco nordestinos que “venceram na vida” em São Paulo.
Foto: Alexandre Battibugli/VSP
Não se parecem com Fabiano, Sinhá Vitória ou os meninos perambulando famintos sertão afora, nem possuem pets que sonham, quase mortos, com preás gordos.
Estão bem longe de ser como aquelas milhares de pessoas – sulistas, nortistas, sudestinos e inclusive “nordesters” – que circulam alquebradas pela região da Luz tantas vezes chamada, muito cruelmente, de Cracolândia.
São, enfim, um tipo de gente muito especial que se uniu finalmente a um naco populacional menor e mais rico, distante dos cerca de 65 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem na pobreza ou extrema pobreza, os primeiros ganhando menos de R$ 500 ao mês, os outros, miseráveis, sobrevivendo com menos de R$ 200/mês.
O tipo de discurso engendrado pelo semanário é recorrente em um país que não repele exatamente a escassez de dinheiro, de comida, de lazer, mas sim aqueles que materializam essa escassez em seus corpos, seus hábitos, suas práticas e seus consumos. Repele-se antes de tudo o pobre. As pedras que a prefeitura de São Paulo mandou colocar semana passada sob viadutos em Tatuapé, zona leste, são outro exemplo dessa forma de afastar dos nossos olhos tão modernos aquela gente mirrada. Faz parte do que o artista e pesquisador Daniel Lima tratou como a “arquitetura da exclusão”.
Se a institucionalidade sustentada pela tal palavra democracia está à vontade em determinar algo dessa natureza (a repercussão do caso fez a prefeitura voltar atrás na decisão), podemos imaginar como a esfera civil vai lidar com o que acha um “problema”. Aliás, desculpem, não precisamos imaginar: não são poucas as pessoas em situação de rua queimadas vivas em todo país.
Esse ódio ao pobre tem um nome: aporofobia, termo cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina. Aporos, palavra grega, significa pobre, e foi sobre esse termo que ela percebeu algo comum em um mundo com quase 80 milhões de deslocados/refugiados: a aversão não necessariamente ao “outro”, ao “estrangeiro”, mas àqueles que não possuem uma conta bancária mais polpuda.
O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes já demonstraram sofrer do mal. No artigo “A direita radical ‘bolsonarista’: da aporofobia à defesa da memória de regimes de exceção”, Edson Dalmonte e Priscilla Dibai analisam discursos de Bolsonaro nos meios de comunicação de 1986 a 2017. As falas xenofóbicas e aporofóbicas são constantes: enquanto europeus e/ou estadunidenses, vindos de regiões mais abastadas, são bem-vindos porque viriam suprir mão de obra especializada, pessoas de países pobres e/ou refugiados são preteridas:
“(…) senegaleses, haitianos, iranianos, bolivianos e tudo que é escória do mundo, né?! E agora estão chegando também os sírios aqui. A escória do mundo está chegando aqui no nosso Brasil, como se a gente já não tivesse problemas demais para resolver. Esse é um grande problema que nós podemos ter”, disse o presidente em matéria publicada pelo Jornal Opção, em 2015.‘Se o problema fosse a pobreza, estaríamos engajados com a sua superação, mas na verdade estamos engajados na eliminação do pobre’.
O Haiti também provoca ojeriza no homem que esqueceu a própria origem humilde: como escrevem Edson e Priscilla, o país é citado como um lugar sujo, miserável, com “mulheres se oferecendo para a prostituição ou para serem empregadas domésticas no Canadá”.
“Quando uma menina começa a se aparecer na sala de aula, depois de uma certa idade, ela vai ser empregada doméstica no Canadá, que fala a língua dela. Isso é o Haiti. Hoje em dia, não tem nada lá. (…) Carvão lá, o galho de carvão lá, é da grossura do dedo mindinho. Lá por exemplo não tem rio, é lodo, tá ok? Eu vi mulher lá se oferecendo lá, o sexo, sem higiene nenhuma (…)” (Jair Bolsonaro, New York Times, 2016).
Perto da fala do chefe, o discurso proferido pelo ministro Paulo Guedes há um ano, durante um seminário em Brasília, até parece inocente. Vocês devem lembrar, mas vale trazer aqui o puro extrato da aporofobia explicitada pelo herói da Faria Lima:
“Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vou exportar menos, substituição de importações, turismo, todo mundo indo para a Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada”.
Guedes é um nato representante de uma elite brasileira ressentidíssima em primeiro momento por não ser de Paris e, hoje, chateada por não ser de Miami. É o que observa a socióloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco, Maria Eduarda da Mota Rocha: a industrialização e a ideia de modernidade emplacadas aqui a partir do século 19, com o dinheiro da produção do café fazendo com que bens de luxo passassem a circular no país, provocaram uma cisão mais clara entre um modo de viver popular e um modo de viver das elites. “É aí que começa a se fomentar uma certa vergonha do povo, um povo que vai sendo, de certa maneira, a lembrança do país de primeiro mundo que nós não somos. É uma elite que sempre está olhando para fora e com muita vergonha do que tem do lado”. Darcy Ribeiro e Celso Furtado, lembra a autora do livro “A Nova Retórica do Capital”, já afirmaram lá atrás: a elite brasileira tem ódio do povo.
“Se o problema fosse a pobreza, estaríamos engajados com a sua superação, mas na verdade estamos engajados na eliminação do pobre. Na forma de extermínio, na forma de exclusão dos espaços de visibilidade. A gente não quer ver o pobre. Não quer superar o problema da pobreza.”
“Flagelados” longe de Paris
Um exemplo da arquitetura da exclusão em Japaratinga, Alagoas: pedrinhas numa mureta para evitar que pessoas se sentem no local.
Foto: Arquivo Pessoal/Fabiana Moraes
A prática de manter os pobres longe dos olhos citada por Maria Eduarda tem larga tradição no país que adora se empoleirar em camarotes e áreas VIP. Os dez campos de concentração construídos no Ceará entre 1915 e 1932 são um terrível exemplo desse hábito. Feitos para conter as milhares de pessoas fugindo das secas que assolaram o sertão em diversos períodos, eles impediam que uma população entendida como desviante e improdutiva (como hoje Bolsonaro vê os imigrantes pobres) acessasse uma Fortaleza que se orgulhava de suas ruas largas e boulevards ao estilo de Paris. O campo do Patu, em Senador Pompeu, chegou a ter 20 mil pessoas. O do Buriti, na região do Crato, 60 mil pessoas. Sob parcos cuidados governamentais – água, comida e higiene eram raros –, milhares foram morrendo à míngua.
Foram milhares de mortos. Mas era gente tão pobre, tão pobre, que nossa própria história, escrita por “quem chegou lá”, se dispôs a esquecer.
Tenho outro exemplo mais prosaico (mas é justamente no cotidiano que a cisão entre classes se dá): à beira-mar de Japaratinga, em Alagoas, reparei uns trabalhadores realizando uma obra em uma espécie de mureta que limita uma casa e uma pousada da areia da praia. O local serve como uma espécie de banco no qual principalmente mulheres e crianças do povoado do Boqueirão costumam sentar-se, no fim da tarde, para conversar e ver o dia ir embora.
Ao me aproximar, percebi que eles aplicavam, a mando dos proprietários – que não vivem no local –, pedrinhas pontudas. Elas servirão justamente para afastar aquele povo de um lazer simples naquela praia quase deserta. Fiquei impressionada com a mesquinhez: sempre me pareceu um exemplo de urbanidade e civilidade ver aquelas mulheres, várias delas trabalhando como lavadeiras, cozinheiras e arrumadeiras nas casas e pousadas da região, conversando entre si enquanto viam seus filhos brincando na areia. Um descanso gratuito, uma forma de estar de pé no outro dia.
Compartilhei minha perplexidade com o senhor que carregava sacos de cimento sob o sol. Era, vejam só, um “nordester” que ali construía outra forma de exclusão de seus amigos, familiares, colegas. De si mesmo, enfim. Sabia disso e sentia raiva. Apontou para dentro de uma das casas:
“Eles fazem isso porque se acham melhores, acham aí que vão viver três mil anos. Sabe o que acontece? Esse povo esquece que também se acaba”.
No outro dia, pintadas de verde, as pedras já estavam no lugar do povo que a elite brasileira não quer ver e se acostumou a odiar.