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Na última quarta-feira (02/06), dois coletivos nacionais de médicos encaminharam por e-mail carta à CPI da Pandemia, solicitando que apure as responsabilidades da atual diretoria do Conselho Federal de Medicina (CFM) na maior catástrofe sanitária da história do Brasil.

São a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP) e a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD).

Em 23 de abril de 2020, o CFM liberou o uso da hidroxicloroquina e cloroquina em pessoas com covid-19, embora as evidências já indicassem que não funcionavam na doença e ainda poderiam causar efeitos colaterais graves.

A autorização foi por meio do parecer 04/2020, que teve como relator o presidente do CFM, Mauro Ribeiro.
Ele próprio divulgou-o após reunir-se com presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e o seu então ministro da Saúde, Nelson Teich.

O parecer tem sete páginas (na íntegra, ao final).

Nas conclusões, veja abaixo, destaca a “autonomia do médico” e a sua não punição por utilizar cloroquina ou hidroxicloroquina em pacientes com covid-19.

Ressalta ainda que “as decisões do CFM basearam-se nos conhecimentos atuais, podendo ser modificadas a qualquer tempo à medida que resultados de novas pesquisas de qualidade forem divulgadas na literatura”.

Confira abaixo.

Desde então se passaram 13 meses e 15 dias.

Apesar de grandes estudos clínicos terem enterrado de vez o uso da cloroquina e hidroxicloroquina na covid-19, o CFM mantém a decisão até hoje, 7 de junho de 2021.

— Causa estranheza que o CFM tenha se manifestado perante a categoria médica e a toda a sociedade defendendo a “autonomia da prescrição médica” em detrimento das evidências científicas disponíveis.

— A Medicina Moderna não é balizada em anseios ou opiniões pessoais.

— A ampla bibliografia científica, além de não identificar benefício com tais drogas, ainda registra aumento de mortalidade associado ao seu uso.

–Além deste fato, assistimos incrédulos à utilização destes medicamentos por vias de administração inadequadas. A nebulização com hidroxicloroquina representa o auge da insanidade médica brasileira no percurso desta pandemia.

Observam também que:

— Entre maio e julho de 2020, a Sociedade de Infectologia, Pediatria, Cardiologia, Pneumologia e Tisiologia, Associação de Medicina Intensiva Brasileira e Medicina de Família e Comunidade se manifestaram contra o uso desses medicamentos.

— Em 30 de maio de 2020, a Sociedade Brasileira de Bioética solicitou a revogação imediata das orientações do Ministério da Saúde sobre o uso da hidroxicloroquina.

— Em 23 de março de 2021, a Associação Médica Brasileira (AMB) condenou o uso da ivermectina, hidroxicloroquina e cloroquina na covid. Posicionamento oposto ao de julho de 2020, quando a AMB defendeu a “autonomia do médico” para receitar esses remédios ineficazes.

Para os dois coletivos de médicos, ”é estarrecedor o CFM ser conivente com profissionais que desprezam a medicina baseada em evidências e o consagrado aforismo hipocrático primum non nocere”. Tradução: primeiro, não causar dano.

Se havia alguma dúvida sobre essa relação de cumplicidade, na quarta-feira passada, 2 de junho, ela se desfez.

O CFM repudiou “veementemente os excessos e os abusos” de parlamentares da CPI.

“A classe lamenta que esses médicos chamados a depor estejam sendo submetidos a situações de constrangimento e humilhação”, disse em nota (na íntegra, ao final)

Embora não explicite nomes, a nota é uma óbvia defesa de duas médicas cloroquinistas e que haviam se saído mal no depoimento à CPI da Pandemia: Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, conhecida como capitã cloroquina; e Nise Yamaguchi, integrante do gabinete paralelo de Bolsonaro.

VERA PRATES: POR QUE O CFM AINDA NÃO FALOU QUE ‘TRATAMENTO PRECOCE’ É INEFICAZ?  

Ouvimos também duas médicas.

Diferentemente das cloroquinistas Mayra e Nise, as duas se pautam pela boa prática médica.

Uma é Camila Boff, da Rede de Médicos Populares, seção Santa Catarina.

A outra, Vera Prates, da Associação dos Médicos pela Democracia, seção Minas Gerais. É com ela que começamos.

Blog da Saúde – Em 2 de junho, a Associação de Médicos pela Democracia e Rede de Médicos Populares pediram à CPI que apure as responsabilidades do CFM na pandemia. No mesmo dia, o CFM divulgou nota de repúdio “aos excessos e abusos” dos parlamentares no trato com os médicos depoentes. Vocês combinaram a data?

Vera Prates – A coincidência foi apenas na data de encaminhamento (risos). Para ser bem precisa, nós começamos a elaborar o nosso documento em 21 de maio, quando montamos um grupo de Whataspp para fazê-lo em conjunto.

Blog da Saúde – Na nota, o CFM diz falar em nome de 530 mil médicos, que é o número de profissionais inscritos no conselho. Acha que houve excessos mesmo com Nise e Mayra?

Vera Prates – Primeiro, garanto que não me incluo entre os 530 mil. Com certeza, muitos outros colegas também não.

Segundo, curioso é que as quase 500 mil mortes por covid não parecem excessivas ao CFM. Nem as experiências mengelianas de alguns médicos com uso de cloroquina inalatória.

Blog da Saúde — Por que decidiram pedir à CPI que apure o papel do CFM na pandemia?

Vera Prates — Acreditamos que a omissão da diretoria em relação à prescrição de tratamentos ineficazes para a covid-19 contribuiu — e continua contribuindo! — para a gravidade da pandemia no Brasil.

Acreditamos que muitas das mais de 472 mil mortes pela covid-19 poderiam ter sido evitadas com medidas de saúde pública respaldadas pelas melhores evidências científicas.

Blog da Saúde — Que pontos querem que a CPI apure?

Vera Prates – Pedimos à CPI que pergunte ao representante do CFM, por exemplo:

— Quais as razões para aprovação do parecer 04/20?

— Por que até agora o CFM foi omisso, não informando à comunidade médica e à sociedade sobre a ineficácia do “tratamento precoce”?

— Por que o CFM não abriu até o momento processos éticos/disciplinares contra os profissionais que propagandeiam e/ou prescrevem tratamentos ineficazes e potencialmente danosos aos pacientes?

Blog da Saúde — Desde o início da pandemia, quantas vezes a ABMMD se manifestou oficialmente ao CFM em relação à autorização para o uso da cloroquina/hidroxicloroquina?

Vera Prates – Não me lembro agora do número exato.

O fato é que fizemos notas, cartas e manifestos, pedindo ao CFM que adotasse medidas éticas para coibir a prescrição e, principalmente, a propaganda, dos remédios sem eficácia comprovada para covid-19, que colocam em risco a saúde do povo, individualmente e coletivamente.

Blog da Saúde – Por que coletivamente também?

Vera Prates –Digo coletivamente, pois o uso desses medicamentos deu – ainda dá! — a muitos usuários a falsa sensação de segurança, levando-os a não aderir às medidas sanitárias preconizadas que poderiam, de fato, reduzir a disseminação do coronavírus e melhorar o controle da pandemia.

O nosso código de ética é bastante claro: nós, médicos, somos proibidos de divulgar tratamentos que não são reconhecidos cientificamente.

Só que, ao longo da pandemia, cansamos de assistir colegas divulgando cloroquina, hidroxicloroquina e outros remédios ineficazes para covid em redes sociais e lives.

Blog da Saúde – E o CFM continua defendendo a “autonomia do médico” prescrever cloroquina e hidroxicloroquina.

Vera Prates – Sim, sim. Porém, NUNCA se posicionou em defesa dos profissionais que sofreram pressão de prefeituras, chefias e planos de saúde para que receitassem remédios ineficazes. Me refiro ao “kit covid” e a remédios que fazem parte dele, como cloroquina, ivermectina, azitromicina.

Blog da Saúde — O CFM deu retorno a alguma dessas manifestações da ABMMD?

Vera Prates – Não. Também não detectamos nenhuma mudança de postura do CFM até a abertura da CPI.

Blog da Saúde – Em 2020, várias sociedades de especialistas se manifestaram publicamente contra o uso desses medicamentos. Em março deste ano, a AMB fez o mesmo. Tem ideia do motivo de o CFM continuar defendendo a “autonomia da prescrição médica” em relação a esses remédios em detrimento das evidências científicas disponíveis?

Vera Prates –– Creio que o único motivo é de ordem político-partidária, em alinhamento total com o governo Bolsonaro.
Não existe outra explicação plausível para essa postura.

Veja bem. O CFM é uma autarquia que existe exatamente para fiscalizar os atos médicos. Portanto, deveria incitar a categoria às boas práticas. Não é o que está fazendo.

A única certeza que temos é a de que a atual diretoria não está preocupada com a boa prática médica.

CAMILA BOFF: ‘CFM ABRIU MÃO DE SUA FUNÇÃO POR APOIO POLÍTICO A BOLSONARO’

Blog da Saúde – Até o momento alguma surpresa na CPI?

Camila Boff – Para nós, não. Mas, para quem não está habituado a refletir sobre os impactos das políticas de saúde na população, está sendo uma oportunidade para entender o significado das decisões erradas e omissões planejadas.

Blog da Saúde – O que era esperado do CFM numa pandemia?

Camila Boff – O CFM é a autarquia que “fiscaliza e normatiza” a prática médica no Brasil. Então o esperado é que se posicione sobre temas na área da saúde, ajudando a esclarecer a categoria e a sociedade em geral.

Porém, na pandemia de covid-19, o CFM se posicionou de forma totalmente equivocada.

No meio de tanta desinformação, o CFM abriu mão de sua função como Conselho para assumir o papel político de apoio ao presidente Bolsonaro. Papel que, diga-se de passagem, não é do Conselho.

Blog da Saúde – Como explica priorização escancarada da agenda política pelo CFM?

Camilla Boff –– Para entender essa priorização, temos que voltar a 2013, quando o governo Dilma Rousseff implantou o Programa Mais Médicos (PMM).

O projeto deu resposta a um problema crônico no Brasil: a falta de médicos no interior do País e nas periferias das grandes cidades. O Mais Médicos ampliava também as vagas para graduação e residência médica no país.

Nas áreas em que nenhum médico formado no Brasil se dispunha a trabalhar, as vagas existentes eram oferecidas a profissionais brasileiros formados no exterior.
Se ainda assim áreas ficavam locais a descoberto, as vagas eram oferecidas então a médicos estrangeiros, entre os quais os cubanos.

Naquele momento, o CFM poderia sentar-se com o governo e fazer um Revalida ou propor a construção de outra forma de validar o diploma de médico estrangeiro no Brasil na dimensão que o programa exigia.

O CFM não fez uma coisa nem outra.

Fez oposição ferrenha desde o início. Tentou até barrar o Programa Mais Médicos pela via judicial.
Um show de xenofobia sustentado por vários anos.

Foi o próprio governo que criou um sistema que autorizava a prática médica para estrangeiros somente dentro do programa, pois o interesse era fixar o médico no local que ele havia sido designado.

Programa Mais Médicos foi a política pública de saúde mais ampla e ousada da nossa geração.

Lamentavelmente, a população de regiões distantes e das periferias das grandes capitais voltou a não ter acesso a médico com o desmonte progressivo que o programa vem sofrendo.

 Blog da Saúde – Os conselhos de medicina e a AMB, justificavam o posicionamento contrário ao Mais Médicos, alegando que “a qualidade da assistência médica à população brasileira estava em risco”.

Camila Boff – Não vou fazer aqui um balanço dos resultados do Programa Mais Médicos e dos sucessivos desmontes sofridos após 2016.

Vou me ater ao discurso da “boa prática médica”.

Entre as ações contidas no “ato médico”, a escolha por tratamentos farmacológicos é uma escolha técnica.

Assim, face às evidências científicas disponíveis para determinada doença, eu como médica tenho autonomia para escolher entre o tratamento “A” ou “B”, desde que ambos beneficiem o paciente.

Em outras palavras: entre as possibilidades disponíveis, o médico pondera qual a melhor intervenção para aquele paciente, naquele momento.

Blog da Saúde – Isso é autonomia?

Camila Boff – Exatamente. Ao defender a “autonomia de prescrição” no vergonhoso caso do “tratamento precoce brasileiro”, o CFM ignorou as evidências científicas. E, assim, feriu o famoso aforisma hipocrático “primo non nocere”, que quer dizer “primeiro, não causar dano” ao paciente.