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Os EUA têm déficit comercial contínuo desde 1975. Assim, há 43 anos que que a economia norte-americana importa mais do que exporta.

Embora esse déficit venha crescendo muito, isso não impediu que a economia dos EUA tenha triplicado de valor, em termos reais, durante esses anos.

Na realidade, tal déficit surgiu fundamentalmente de uma decisão do governo do EUA, que, em 1971, abandonou o padrão ouro como reserva de valor. Com o abandono do ouro, o dólar e os papéis a ele associados, como os títulos do Tesouro norte-americanos, se tornaram a grande reserva mundial de valor.

Isso fez com que empresas e países passassem a inundar os EUA com investimentos, o que aumentou a disponibilidade financeira para importar.

Assim, o déficit comercial dos EUA surgiu, em grande parte, não de uma fraqueza estrutural da economia norte-americana, mas justamente do contrário: da hegemonia do dólar como moeda de intercâmbio planetária e como reserva mundial de valor.

Os dólares que a economia norte-americana perde com seu déficit comercial acabam voltando para ela quer, em menor escala, via importações dos EUA, quer via investimentos, especialmente os investimentos em títulos do Tesouro norte-americano, que compõem boa parte das reservas internacionais de países e empresas.

A complementariedade entre as economias dos EUA e da China se baseia, ou se baseava, em grande parte, nesses mecanismos financeiros.

Os EUA “desterritorializaram” parte significativa da sua produção industrial, que se deslocou para China, em busca de custos mais baixos e lucros bem mais altos. Em compensação, a China passou a ser a principal compradora de papéis do EUA, compondo reservas internacionais de mais de US$ 3 trilhões, além de investir muito em empresas privadas norte-americanas e no seu mercado acionário.

Saliente-se que boa parte do déficit comercial que os EUA têm com a China (US$ 419 bilhões, em 2018) é resultado de ações de firmas norte-americanas. Apenas em 2017, a norte-americana Apple importou 61 milhões de iPhones montados na China para serem vendidos no mercado dos EUA, a um custo de cerca de US$ 16 bilhões. Não entra nesse cômputo tudo o mais que a Apple monta na China, como tablets, computadores, etc. Em contrapartida, a Huawei, tão criminalizada por Trump, importou dos EUA, em 2018, cerca de 11 US$ bilhões em chips e software de empresas norte-americanas.

Assim sendo, o déficit comercial dos EUA com a China, embora tenha crescido de ao redor de US$ 80 bilhões, em 2001, para os atuais US$ 419 bilhões, não parece ser, em si mesmo, uma grande ameaça aos interesses norte-americanos.

De fato, a ameaça não vem do déficit comercial em si, mas da mudança do papel na China na economia mundial.

A relação de complementariedade econômica entre EUA e China era, até pouco tempo, uma típica relação centro-periferia.

Os EUA, assim como outros países, desenvolviam as inovações tecnológicas, depositavam as patentes, fabricavam os componentes mais caros, como chips, e usavam a China para montar seus produtos a um preço muito baixo. No caso dos iPhones, por exemplo, em um custo total desenvolvimento e fabricação de US$ 240 por unidade, a China agregava apenas cerca US$ 8 a esse valor.

O problema é que a China rompeu com esse paradigma e passou a fazer o contrário do que o Brasil de Bolsonaro está fazendo: começou a investir maciçamente em educação e ciência e tecnologia. Apenas entre 2006 e 2014, os gastos da China com educação quadruplicaram.

Em 2017, a China enviou 608 mil estudantes para se aperfeiçoarem nas melhores universidades dos EUA e da Europa. Hoje, a China tem cerca de 1,5 milhão de estudantes nos melhores cursos de pós-graduação do planeta.

Além disso, a obrigatoriedade de os investidores estrangeiros fazerem joint –ventures com empresas chinesas permitiu que os chineses desenvolvessem tecnologia em suas próprias empresas. A China jamais teria vendido uma Embraer para a Boeing. Ao contrário, teria obrigado a Boeing a investir na sua Embraer.

Como resultado, a China aumentou exponencialmente seu número de patentes. Em 2000, a China depositou 51.906 pedidos de patentes em todo o mundo. Apenas 17 anos depois (2017), tais pedidos aumentaram para 1.381.594.

Já os EUA, que em 2000 depositavam seis vezes mais pedidos de patentes que a China (cerca de 300 mil), em 2017 depositaram 606 mil, menos da metade dos pedidos depositados pela China.

Entre 2013 e 2017, a China duplicou o número de suas patentes em vigor, as quais passaram de 1.033.908 para 2.085.367. Continuando nesse ritmo alucinante, a China deverá ultrapassar, até 2020, o número de patentes em vigor dos EUA (2.984.825).

Ora essa ascensão meteórica da China no campo da ciência, tecnologia e inovação rompe com o paradigma centro-periferia que caracterizava sua relação com os EUA e demais países desenvolvidos.

A China não será mais a fábrica barateira que montava os produtos de outros países. A China será, em breve, a grande inovadora do planeta. Ela será o centro dinâmico do capitalismo mundial, dominando todo o processo de desenvolvimento e fabricação de novos produtos, bens e serviços.

É por isso que nessas negociações “comerciais”, os Estados Unidos sinalizaram que a China teria não apenas interromper a transferência de tecnologia das corporações americanas que fazem negócios naquele país, mas de compartilhar seu desenvolvimento tecnológico com os EUA, se quisesse um acordo.

Isso incluiria as tecnologias de nova geração sensíveis a interesses militares, como 5G, IA (inteligência artificial) e segurança cibernética, que hoje vêm sendo dominadas por firmas chinesas, como a Huawei.

Assim, os EUA não querem simplesmente um acordo para reduzir o “déficit comercial” dos EUA com a China. O que eles realmente desejam é interromper o desenvolvimento da tecnologia chinesa, especialmente naquelas tecnologias-chave para a hegemonia econômica futura.

Mas essas não são apenas as novas indústrias das próximas décadas na economia. Elas são também as novas tecnologias com grandes implicações militares. Se a China alcançar a paridade ou ultrapassar os EUA nessas áreas, isso poderia perturbar também o domínio militar do império dos EUA.

Por isso, desde o início das negociações com a China, em março de 2018, a questão da tecnologia era central.

O neocon e chefe da equipe de negociação dos EUA, Robert Lighthizer, o United States Trade Representative, emitiu, em agosto de 2017, um relatório de alerta de que o plano estratégico da China para 2025 visava superar os EUA nessas três áreas de tecnologia.

Esse relatório pretendia mostrar que a China estava “roubando” tecnologia dos EUA, nessas áreas. O relatório subsequente de Lighthizer, datado março de 2018, supostamente “provou” isso.

A guerra “comercial” EUA-China foi então lançada naquele mês.

Assim, a suposta “guerra comercial” entre EUA e China é, na verdade, uma guerra tecnológica e militar. E, também é, óbvio, uma guerra geoeconômica e geopolítica.

Mas, além dessa questão tecnológica crucial, há também uma questão financeira e monetária perturbadora. Desde 2011, a China vem diminuindo suas reservas internacionais em dólares como proporção do PIB. Naquele ano, as reservas internacionais da China equivaliam a 47,56% do PIB. Hoje, equivalem a 22, 71% do PIB. Em termos absolutos, tais reservas também vêm caindo. Assim, em 2013, elas somavam mais de US$ 3,8 trilhões. Atualmente, elas não passam de US$ 3 trilhões.

Tal diminuição é causada por dois movimentos simultâneos. Um maior investimento no mercado interno chinês e em projetos estruturantes ao redor do mundo, principalmente o da Nova Rota da Seda, e um deslocamento de suas reservas de valor do dólar para títulos lastreados em ouro.

Recentemente, a China lançou títulos para contratos futuros de petróleo em yuans, lastreados em ouro. Assim, países como Rússia e Irã poderão exportar seu petróleo para China sem necessidade de usar dólares para tanto.

Desse modo, a China, a Rússia e outros aliados vêm realizando ações para reduzir sua dependência em relação ao dólar e criando alternativas para realizar comércio internacional em outras moedas.

Embora ainda incipientes, essas alternativas representam potenciais ameaças concretas à hegemonia do dólar. Em um futuro novo contexto de outras moedas mundiais, como alternativas viáveis à moeda norte-americana, o atual déficit comercial dos EUA passa a ser, sim, um problema sério.

Por conseguinte, a atual ofensiva de Trump contra a China está baseada em receios justificados, o que não significa dizer que essa estratégia de confronto seja a melhor, ou mesmo que produzirá algum resultado.

Na realidade, o tiro vem saindo pela culatra. O déficit do ano passado (US$ 891 bilhões) foi o maior da história e as compreensíveis retaliações chinesas ameaçam jogar o PIB mundial para baixo, com consequências negativas para todos os países, inclusive o Brasil.

Ademais, a ascensão da China parece inevitável. Quem investe na educação do seu povo e em ciência e tecnologia nunca perde. A ofensiva de Trump parece fútil.

Se tivéssemos alguma inteligência estratégica no governo Bolsonaro, estaríamos debatendo ações e medidas destinadas a melhor posicionar o Brasil nesse embate mundial, aproveitando as oportunidades que inevitavelmente surgirão desse conflito.

Não temos. Temos um astrólogo terraplanista e um chanceler pré-iluminista a nos guiar pelo terreno mutável e traiçoeiro do cenário mundial com base numa aliança incondicional ao patético Trump, a qual agride nossos interesses objetivos.

Temos um governo vira-lata que aposta no vira-latismo. É um perdedor que aposta num perdedor.

Aposta na submissão contra a soberania. Aposta no rico contra o pobre. Aposta na ignorância contra a educação e a cultura. Aposta na violência contra a paz. Aposta na intolerância contra a tolerância e os direitos humanos. Aposta na morte contra a vida.

O governo Bolsonaro colocou o Brasil no carro alucinado dirigido pelo maníaco Trump. E sem cadeirinha.

Chegou a hora da nação apostar na sua salvação.

MARCELO ZERO

É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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