Em entrevista no Estadão (02/01/18), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que uma eventual condenação de Lula seria ruim para o país, para a memória. E acrescentou: “mas não acredito que a população vai tremer nas bases por causa disso. Não acho que o País vai tremer em função disso”. FHC manifestou uma sabedoria intrínseca às elites brasileiras de todos os tempos: façam elas o que quiserem com as instituições, com a democracia, com a república; dêem quantos golpes puderem dar, assaltem quantas vezes quiserem os cofres públicos, elas, as elites, sempre contam com a passividade do povo. Contam com a naturalização dessa passividade ideologicamente construída, que, de fato, foi recorrente nos momentos decisivos da nossa história.
Pois chegou a hora de fazer o Brasil tremer, de fazer o povo tremer, para dizer não à arrogância e ao arbítrio desmedido das elites. Não se trata de fazer nenhuma revolução, mas de restaurar e defender a democracia, vilipendiada por essas mesmas elites. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, da França e de tantos outros países, não tivemos nenhuma revolução política democrática e nenhuma revolução social capazes de estabelecer os direitos, as regras sólidas do jogo democrático, a igualdade perante a lei, um senso reduzido de desigualdade, a justiça e o equilibro social e a dignidade dos cidadãos. Esse estado iníquo de coisas se prolongará pelos séculos vindouros se o povo não se erguer e subordinar as elites predatórias à sua soberania.
No Brasil, a vontade popular nunca foi soberana. Sempre foi usurpada pelas elites, acostumadas a saquear o tesouro público, privatizando-o, e a manter o povo na pobreza. Não por acaso, existem mais de 50 milhões de pobres e mais 114 milhões de remediados, totalizando 80% da população. Segundo o IBGE, metade da população brasileira tem renda menor que um salário mínimo. Em contrapartida, apenas seis pessoas concentram a metade da riqueza do País. Isto é aceitável? É este o País que queremos no século XXI? Isto não é causa de indignação e revoltas justas que precisam se traduzir em ação? Isto não é manifestação da impiedade e da crueldade dos ricos e poderosos?
Qualquer liberal autêntico dos séculos pregressos, desde John Locke, justificaria a rebelião contra este estado de coisas inaceitável. Se se quiser ser liberal que se seja, mas que não se seja golpista, corrupto, predatório, sonegador fiscal e sonegador de direitos e da democracia. Se se quiser ser de esquerda, que se seja, mas que não se seja uma esquerda de gabinete, dos aparelhos burocráticos, de pessoas aburguesadas que fazem parte do sistema de dominação que está aí. As esquerdas não podem ser o flanco esquerdo do neoliberalismo, a cereja do bolo dos grandes capitalistas globais, tomados pela falsa consciência ambientalista e social, enquanto continuam a produzir a destruição do planeta e a pobreza e a miséria das pessoas.
FHC diz ainda que se o julgamento terminar em condenação, tem que aceitar. Pois, não tem que aceitar. É mais do que a pessoa do Lula. É mais do que o líder Lula. Neste julgamento, não há provas e não há provas porque não há crime. O julgamento é puramente político, é um julgamento para decapitar as esperanças do povo, é um julgamento para condenar o próprio povo, é um julgamento para encarcerar a democracia. A condenação não pode ser aceita e o Brasil precisa tremer. Se Lula for condenado, que se formem comitês de defesa da democracia por todo o País e que não se aceite eleições ilegítimas.
O julgamento é um jogo de cartas marcadas. Não há imparcialidade e nem isenção. Portando, não há Justiça. O presidente do TRF-4 e alguns de seus assessores já manifestaram o seu pré-julgamento condenatório. Moro não poderia ter julgado Lula porque o caso do triplex nada tem a ver com a Petrobras como o próprio juiz reconhece. Portanto, Moro não é o juiz natural para julgar o caso. Há uma ilegalidade de origem em todo esse processo Trata-se de um conspiração política para levar o golpe até as últimas consequências, visando manter a exploração despudorada, a miséria do povo, a naturalização da passividade e a entrega da riquezas públicas a interesses privados e estrangeiros.
Se as lideranças políticas e sociais e os ativistas progressistas e democráticos não proclamarem e não convocarem o levante popular, as gerações das pessoas que vivem hoje, e que se dizem progressistas e de esquerda, merecerão que em suas lápides se inscreva: “Aqui jaz um covarde”. Seremos cobertos de opróbrio e de vergonha até o fim de nossas vidas, pois capitulamos sem lutar. Não mereceremos lembranças boas das gerações futuras e bem que mereceremos ser condenados a um esquecimento eterno. O que está em jogo, antes de tudo, é uma questão de dignidade pessoal e da dignidade do povo.
O direito à desobediência e à vingança
É preciso dizer ao povo que ele tem o direito de não aceitar um julgamento que é uma farsa porque aqueles que julgam não são juízes justos, mas golpistas, representantes das elites predatórias aquartelados nos tribunais. É preciso dizer que o próprio STF não tem moral porque rasgou a Constituição para proteger Aécio Neves e outros criminosos. É preciso dizer ao povo que ele tem o direito e o dever de não abrir as portas da misericórdia e do perdão para aqueles que sempre o fazem sofrer, para aqueles que lhes tiram o pão, o leite, o remédio, a moradia, a educação, o salário e a cultura. Para estes predadores não pode haver o dia do perdão, mas o dia da vingança.
É preciso dizer ao povo que ele tem o direito à vingança justa, pois a vingança pode ser o instrumento da justiça quando se vive sob a égide da injustiça. O oposto da justiça não é a vingança, como acredita a esquerda mi,mi mi, mas a injustiça. O povo tem direito de odiar. De odiar aqueles que o relegaram a uma vida indigna, cheia de misérias, de sofrimento, de dor, de falta de assistência e de oportunidades, enquanto esses exploradores se banqueteiam às custas do suor, do sangue e das aflições dos trabalhadores e dos pobres. Aqueles que vivem definhando e penando não podem amar aqueles que lhes tiram o alimento e os direitos para se regozijarem na riqueza e na luxo. Aqueles que pranteiam seus mortos, vítimas da violência, que são milhares, aqueles que padecem os sofrimentos dos seus doentes desassistidos, que são milhões, não podem amar os políticos que lhes negam segurança e atendimento, pois eles são criminosos que precisam ser castigados. O Brasil é o país que mais mata no mundo, mais do que os países em guerra. A miséria, o abandono, a desassistência, a falta de direitos, a exclusão e um Estado violento, predatório e injusto são fábricas da morte.
As universidades, as ONGs, os sindicatos, as igrejas e parte das esquerdas não podem continuar sendo instrumentos da difusão da ideologia da naturalização da passividade. Enquanto os pobres continuam sendo punidos por um Judiciário iníquo, pregam a impunidade de bandidos e celerados de colarinho branco. Pregam uma concórdia falsa, uma harmonia que nunca existiu, um amor pueril, ao gosto da ideologia dominante.
Essas elites que estão ai dominando, na política, no Judiciário, no alto funcionalismo público, nos tribunais, nos bancos, na indústria (claro que há exceções e todos esses lugares), estão a serviço de uma ideologia que quer perpetuar e naturalizar a tragédia e pobreza no Brasil. Eles têm os corações vis, dominados pelo egoísmo e pela cobiça. Tal como esse governo, esse Judiciário e esse Congresso, são despudorados. Os integrantes da congregação do golpe anuncia os seus crimes e suas violações em comunicados oficiais, sem rubor e sem que ninguém os molestem significativamente. Não temem a punição, pois diante de um sistema corrompido, somente o povo poderia puni-los. Enquanto o povo não for capaz de lhes impor medo, continuarão na sua soberba desenfreada e na senda de crimes sem punição.
Por isso, os líderes autênticos precisam chamar o povo a agir, a manifestar a sua ira em atos e aos gritos, pois o povo, no seu silêncio, está irado, mas desesperançado. A ira do povo é santa e por isso deve se transformar em potência e poder, pois só ela poderá plantar as árvores que produzirão os frutos da justiça, da igualdade, da dignidade e da liberdade. Não podemos aceitar a submissão e a passividade eternas, que foram ideologicamente construídas e naturalizadas como instrumentos de dominação de elites pervertidas. Fazer tremer o Brasil e não aceitar a condenação do Lula, não é só por Lula, é pelo povo, é pelo Brasil. Os ceifadores da esperança devem sentir medo de que chegue o dia em que pagarão pelos seus crimes nas mãos de um povo irado.
ALDO FORNAZIERI
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP)