Lula tem sido o presidente que mais avançou na pauta indígena. Entretanto, ainda estamos muito aquém do necessário para garantir a dignidade desses povos

Há uma ironia pungente em ver o presidente Lula, comovido, pendurando a Ordem Nacional do Mérito no peito do cacique Raoni enquanto, em algum escritório da Funai em Brasília, servidores da Funai aguardam há meses a regulamentação das bandas da Gratificação de Apoio à Execução da Política Indigenista (GAPIN) – aquela gratificação importante para quem enfrenta jagunços, traficantes, madeireiros e garimpeiros em territórios isolados. A cena na Aldeia Piaraçu (MT) foi bela, sem dúvida. Lula, com sua retórica afiada, chamou Raoni de “o mais representativo líder do planeta”. Mas e quando as medalhas forem guardadas e os holofotes se apagarem? O que restará para os povos originários além de discursos que parecem vazios nas terras invadidas por tratores e pistoleiros?

É incontestável, porém, que Lula tem sido o presidente que mais avançou na pauta indígena na história brasileira, especialmente ao colocar os próprios indígenas como protagonistas das políticas que lhes dizem respeito. A criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sônia Guajajara, a nomeação de Joênia Wapichana como primeira presidente indígena da Funai e a escolha de Weibe Tapeba para liderar a SESAI representam uma mudança paradigmática na relação do Estado com esses povos. Esse protagonismo tem inspirado mudanças em outras esferas governamentais, como demonstra o trabalho expressivo da secretária Juliana Alves, a Cacika Irê, à frente da Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará, primeira do tipo no Nordeste. Não se pode ignorar também o impacto positivo das políticas transversais na vida dessas comunidades, como o Bolsa Família, o Bolsa Permanência, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e o Minha Casa, Minha Vida adaptado às realidades indígenas. Esses programas têm contribuído significativamente para mitigar o sofrimento histórico dessas populações. Entretanto, apesar de todos esses avanços inéditos, ainda estamos muito aquém do necessário para garantir a dignidade e os direitos constitucionais desses povos.Play Video

O Abril Indígena, esse mês de lutas e memórias, não pode ser apenas um período de homenagens. É tempo de lembrar que, enquanto o Congresso bate o pé através do lobby do agronegócio, o Palácio do Planalto tem nas mãos ferramentas poderosas – e subutilizadas. Joenia Wapichana sabe disso melhor que ninguém. Em reuniões recentes com sindicalistas, ela ouviu demandas tão básicas quanto tristes: servidores sem progressão funcional, concursados aprovados há anos sem nomeação, laudos antropológicos engavetados por falta de verbas. Não é preciso uma reforma constitucional para resolver isso. Basta vontade política.

A realidade enfrentada por Sônia Guajajara ilustra as contradições do governo. Enquanto Lula reafirma publicamente seu compromisso com os povos indígenas, a ministra revela: “a gente enfrenta o próprio Estado brasileiro”, desabafando em um momento de visível frustração. Após mais de um ano à frente do histórico Ministério dos Povos Indígenas, ela expressa o paradoxo de liderar uma pasta que, apesar de sua criação histórica, enfrenta obstáculos sistêmicos dentro da própria máquina estatal. “Não é fácil fazer a disputa de narrativa depois de quatro anos de desmonte e de ataques aos povos indígenas”, explicou a ministra, revelando o peso de tentar reconstruir políticas após quatro anos de retrocessos.

Tomemos como exemplo a demarcação de terras. Lula homologou 13 territórios e declarou limites de outros 11 territórios em sua atual gestão – um avanço, claro, mas ainda tímido diante das 237 terras indígenas com processos parados, segundo o Cimi. Enquanto isso, a Ferrogrão, esse projeto faraônico que rasgará o Mato Grosso, segue nos planos do governo, mesmo ameaçando territórios Kayapó não homologados. Ora, se o Ministério dos Povos Indígenas já existe, por que não criar condições para uma força-tarefa com antropólogos e servidores concursados para acelerar os laudos? E por que não suspender licenças ambientais em áreas sob disputa, como fez a Justiça no caso da TI Munduruku?

Em seu desabafo, Guajajara expôs a situação complexa do ministério, criado com uma estrutura limitada e enfrentando resistências internas no próprio governo. “O ministério exige uma equipe técnica mais fortalecida. Tem pouquíssimos servidores. Fizemos uma reconstituição de equipe com pessoas contratadas, mas isso não é o suficiente”, confessou, revelando as dificuldades operacionais que limitam a capacidade de ação da pasta. Ela destacou que, apesar das limitações, só conseguiu implementar algumas políticas “por meio de emendas parlamentares ou com o apoio de parceiros”, evidenciando a fragilidade orçamentária do ministério.

Fala-se muito em “governo de coalizão”, nesse jogo de empurra com o Centrão, mas há medidas que dependem apenas da caneta presidencial. A GAPIN, por exemplo, poderia ser regulamentada por portaria do Ministério da Gestão e Inovação (MGI). O plano de carreira dos servidores da Funai, um decreto. Em relação à nomeação dos aprovados no CNU, aguardamos, mas sem um plano de carreira consolidado, a Funai tem perdido quadros para outras carreiras. São atos administrativos, não legislativos. E no entanto, persiste a morosidade – aquela velha desculpa da “complexidade burocrática” que, convenhamos, soa como eufemismo para falta de prioridade.

A ministra também falou abertamente sobre os obstáculos que enfrenta no combate ao garimpo ilegal nas terras indígenas, particularmente no território Yanomami. “A falta de orçamento limita muito a ação. Se dependesse da minha vontade, a gente mandava mais helicópteros, mandava mais gente, contratava mais, reconstruía postos de vigilância”, lamentou. Segundo ela, os avanços são lentos devido à burocracia estatal e à limitação de recursos, mesmo com a grave situação que persiste no território Yanomami.

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No encerramento do Acampamento Terra Livre, em 2024, Sônia Guajajara soltou a frase que deveria estar pintada nas paredes de seu Ministério: “as vezes a gente engole o choro. Às vezes sorri […]. Mas está chorando por dentro. Mas a gente vai se manter firme”. Essa dualidade entre a face pública e a dor privada revela o peso que carregam as lideranças indígenas ao ocuparem espaços institucionais, constantemente pressionadas entre as expectativas de suas comunidades e as limitações impostas pela burocracia estatal.

Um caso emblemático dessas contradições é a situação do povo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Mesmo após o Ministério dos Povos Indígenas ter elaborado um plano emergencial para a região, a implementação esbarra em entraves burocráticos. A Ministra havia dito que, embora seja possível elaborar políticas públicas, a maior dificuldade reside na sua efetiva implementação, exemplificando como muitas boas iniciativas acabam se perdendo na complexidade da administração pública.

Não se trata, é claro, de ignorar os avanços. A recriação do Ministério dos Povos Indígenas foi histórica. A queda no desmatamento em 2024, ainda que insuficiente, é um alívio. Mas o cerne da questão é outro: até quando os gestos simbólicos bastarão? O Acampamento Terra Livre, que ocorre entre os dias 07 e 11 de abril, ocupa Brasília com cocares e cartazes, cobra metas tangíveis. O movimento indígena demonstra maturidade e ousadia. O tema central do evento é “APIB Somos Todos Nós: Em Defesa da Constituição e da Vida”, destacando a luta pela garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas, especialmente no que diz respeito à demarcação de terras e contra o Marco Temporal. São bandeiras fincadas nas aldeias, mas que devem reverberar nas salas do Planalto e do Congresso Nacional – se é que neste último há ouvidos suficientes dispostos a escutar.

O Abril Indígena será lembrado pelo que nele se conquistar, não pelo que nele se discursar. E a história, essa juíza implacável, não perdoará homenagens vazias diante de terras invadidas e direitos negados. Afinal, como testemunhei em diversas manifestações, os indígenas são enfáticos: seu modo de ser não cabe em medalhas. Ele exige territórios livres e políticas que transcendam o palanque. Todo o resto é apenas retórica vazia.

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Apesar dos obstáculos, os indígenas mantêm a esperança. Embora ainda haja muito a avançar, é preciso reconhecer os pequenos progressos conquistados na atual gestão de Lula. A própria existência do ministério representa uma conquista simbólica de peso, conferindo visibilidade às questões indígenas no mais alto escalão da administração federal. No entanto, o simbolismo, por si só, é insuficiente – fazem-se necessárias ações concretas que transformem efetivamente a vida nas aldeias e nos territórios indígenas urbanos e assegurem a proteção de todos os territórios tradicionais.

Este Abril Indígena precisa marcar não apenas celebrações, mas compromissos efetivos. O Brasil, que se diz orgulhoso de sua diversidade cultural, precisa materializar esse orgulho em políticas públicas concretas, que não apenas atendam às demandas emergenciais, mas que construam um novo paradigma de relação entre o Estado brasileiro e os povos originários – uma relação baseada no respeito à autodeterminação, na garantia de direitos e no reconhecimento de uma dívida histórica que ainda está longe de ser quitada.

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