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Desde que foi criada, a Lava Jato passou a ter no Jornal Nacional um parceiro para  divulgar, em primeira mão, as suas operações.

Os veículos do Grupo Globo costumavam chegar aos locais dessas ações juntos com as equipes da Polícia Federal.

Em alguns casos, até antes. As interrupções na programação, para dar essas notícias  ao vivo, eram constantes.

Quando os dados e imagens  iam ao ar pelo JN, William Bonner ou Renata Vasconcellos diziam se tratar de informações obtidas “com exclusividade”.

Rapidamente os concorrentes começaram a perceber que entre a Lava Jato e a Globo havia algo mais.

O procurador geral da República, Augusto Aras, a quem a Lava Jato está submetida, anunciou, há duas semanas, que estuda a sua transformação em uma unidade permanente de combate à corrupção, com sede em Brasília.

Seriam desativadas as unidades do Rio de Janeiro, São Paulo e de Curitiba.

Para bom entendedor, essa transformação é uma forma de dizer que ela chegou ao fim.

Críticas e denúncias sobre irregularidades cometidas por suas forças tarefas e pelo ex-juiz Moro pipocam por todos os lados.

Sem dar espaço a quaisquer dessas críticas ou denúncias, o JN vem se desdobrando na defesa da Lava Jato.

Como esse tipo de atuação não é jornalismo, o que o JN está fazendo, agora, não é  nem mais só divulgação para a Lava jato. É assessoria de imprensa, mesmo.

Caso essa assessoria não seja bem sucedida em seu objetivo principal – evitar o fim da Lava Jato – o trabalho envolve outras serventias.

Entre elas manter viva junto à opinião pública os “méritos” do ex-juiz Sérgio Moro e do procurador federal Deltan Dallagnol, transformados em “paladinos no combate à corrupção” pelo próprio JN.

Algo indispensável em se tratando de pessoas que sonham com a política.

No caso de Moro, o sonho é explícito, a ponto do mundialmente conceituado  sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, afirmar que ele é o candidato dos Estados Unidos para a presidência do Brasil.

“EMPRESA SOLIDÁRIA”

Só algo assim para explicar o fato de que, na edição de 7/7, o JN tenha tentado transformar a Lava Jato em uma espécie de “empresa solidária” no combate ao coronavírus no país.

Ao anunciar que “finalmente” ela tinha conseguido que o governo, através do ministério da Saúde, aceitasse a doação de R$ 500 milhões, o telejornal da Globo passou por cima do mais elementar conceito de notícia.

Destacou apenas a suposta boa ação da Lava Jato, num momento em que o Brasil se transforma no epicentro da pandemia no mundo.

Omitiu, por outro lado, tudo o mais que a desabonava.

Nada foi dito, por exemplo, sobre o fato de que não cabe à Lava Jato, enquanto uma força tarefa, decidir o destino de recursos que estejam em seu poder. A legislação prevê os caminhos a serem seguidos.

Como estava acostumada a funcionar como um estado dentro do estado, sem dar satisfação a ninguém, a Lava Jato novamente errou.

Se o JN não estivesse funcionando como seu assessor de imprensa, Willian Bonner ou Renata Vasconcellos deveriam ter explicado que esse dinheiro é parte ínfima do  que foi arrecadado com os acordos de leniência firmados entre a operação e várias empresas por ela investigadas.

Investigações e acordos cada dia mais contestados, uma vez que as delações premiadas, base da maioria das condenações, foram obtidas após longas prisões e violações de direitos de quem estava sob sua custódia.

A Procuradoria da República, por exemplo, finalmente aceitou a delação premiada do ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran que, há mais de três anos, acusa a turma da “República de Curitiba” de tráfico de influência, prisões ilegais e venda de sentenças.

Ainda não há data para Duran ser ouvido, mas o assunto vem sendo  solenemente ignorado pelo JN.

Outra denúncia igualmente ignorada é a do delegado Mário Castanheira Fanton, que atuou por 71 dias na Lava Jato em Curitiba.

Fanton discordou dos métodos utilizados para as criminalizações – segundo ele falsas perícias, fraude processual, condescendência criminosa e prevaricação – e acabou sendo alvo de vários processos pela própria Lava Jato.

Foi vitorioso em praticamente todos e se prepara para cobrar indenização milionária à União.

A ação de Fanton promete ter seguidores, inclusive entre os que se consideram vítimas dessas ilegalidades. Ele atuou na Operação Carne Fraca, que atingiu a gigante B&F, que abriga as marcas Sadia e Perdigão.

FALÊNCIAS E DEMISSÕES

Outro alvo da Lava Jato foi a Petrobras, a então maior empresa da América do Sul e uma das maiores do mundo.

Desmoralizada nacional e internacionalmente, foi obrigada a pagar multas milionárias para os seus acionistas estadunidenses, sob o argumento de que lhes causou prejuízos.

Se o objetivo da Lava Jato fosse realmente combater a corrupção, os corruptos deveriam ser culpabilizados, preservando-se a empresa.

É assim que funciona em toda parte do mundo.

Já o resultado do “combate à corrupção” na Odebrecht foi ainda mais grave: praticamente a sua falência, com a demissão de 230 mil trabalhadores.

Coincidentemente, o espaço antes ocupado pela Odebrecht na realização de obras no país e no exterior agora é da Halliburton, uma multinacional estadunidense, que atua tanto na área do petróleo quanto da construção civil.

A Halliburton, para quem não sabe, acumula dezenas de gravíssimas denúncias de corrupção ao redor do mundo e nunca foi penalizada pela Justiça de seu país.

Como se não bastasse omitir tudo isso, o JN ainda vem “cavando” mais espaço para Moro em suas edições.

O caso do dia 7/7 é ilustrativo também sob esse aspecto.

Apesar de Moro estar em plena guerra com Bolsonaro e os bolsonaristas, o JN o incluiu entre as autoridades que se solidarizaram e desejaram “pronta recuperação” ao “Mito”, diante do anúncio que ele está com covid-19.

DE PERSEGUIDOR A “VÍTIMA”

Já o trabalho para tentar transformar o antes implacável juiz em “vítima” de perseguição começou no dia seguinte (8/8).

Uma primeira matéria trouxe a informação de que ele foi ouvido no processo que apura possível invasão de hackers em celulares de autoridades, inclusive o dele, na época ministro da Justiça.

O processo apura ainda se Moro havia interferido na Polícia Federal, a exemplo do que denunciou em relação a Bolsonaro. Isso o JN suprimiu.

Em uma segunda matéria com Moro, na mesma edição, o JN o ouviu sobre a decisão  tomada pelo Facebook de remover, por conterem discursos de ódio, contas de políticos bolsonaristas, seus assessores e de filhos do presidente.

Moro apoiou a decisão, mesmo que enquanto ministro, não tenha feito nada contra as fake news.

Sua fala no JN, no entanto, foi bem mais soft do que a divulgada em sua rede social, onde celebrou a decisão e se disse alvo dessas “redes de mentiras”.

Como se sabe, um dos papéis de um assessor de imprensa é evitar excessos por parte do assessorado, especialmente quando podem redundar em complicações futuras.

Dito de outra forma, para que colocar no ar uma fala de Moro cutucando Bolsonaro num momento delicado para a Lava Jato? A veracidade e fidedignidade da notícia que se danem.

JN não está assessorando e investindo em Moro por acaso.

SEM CRÍTICAS

Como principal telejornal brasileiro, o JN age como partido politico em defesa dos interesses dos seus proprietários.

Bolsonaro não era o candidato dos sonhos da família Marinho. Ela gostaria que um nome mais palatável tivesse chegado ao poder (Geraldo Alckmin,  Henrique Meirelles ou até um Álvaro Dias).

Como nenhum deles decolou e diante do ódio que nutre contra o PT, a solução foi ir de Bolsonaro, acreditando que poderia “domesticá-lo”.

Essa, aliás, foi a aposta feita pela “elite do atraso” brasileira. Moro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, funcionariam como garantias de que esses interesses seriam contemplados.

Só que não funcionou.

A cobertura digna de um superstar que Moro havia recebido por parte do JN, quando do pedido de demissão como ministro em 24/4, deixou claro que ali não era um ponto final.

Nem para ele e muito menos para o JN. Impressão reforçada por sua presença quase diária no telejornal das 20h30, a partir de então.

A exemplo do que fez durante o tempo em que Moro foi juiz, o JN não levou e continua não levando ao ar nenhuma crítica ou informação que possa comprometer a sua imagem de “bom mocinho” e de “inimigo da corrupção”.

Tanto é assim que as denúncias do empresário Paulo Marinho contra Bolsonaro, potencialmente mais explosivas do que as de Moro, foram minimizadas pelo JN para não tirar os holofotes do seu assessorado.

Pior ainda. Até hoje o respeitável público do JN não ficou sabendo das novas  denúncias da #Vazajato, em 1/7, envolvendo  a atuação de agentes do FBI junto com a Lava Jato  em ações no Brasil.

Quem se lembra que um dos policiais que escoltou Lula, quando ele saiu da prisão para ir ao enterro do neto, usava adesivo que não era da Polícia Federal?

As novas revelações do The Intecept/Pública mostraram que essa parceria informal, pois não se deu pelos canais competentes entre as autoridades brasileiras e estadunidenses, é ilegal.

Se a Lava Jato quisesse realmente combater a corrupção e não apenas atender a interesses de setores dos Estados Unidos (deep state?) contra as empresas brasileiras e políticos progressistas, bastaria ter se pautado pelo decreto 3.810/2001, firmado pelo Brasil e pelos Estados Unidos, prevendo procedimento escrito e formal, intermediado por órgãos específicos de lado a lado.

Para complicar mais ainda a situação do procurador Dallagnol, o “Robin” de Moro no suposto combate à corrupção, a agência Pública detalhou como funcionava as tratativas sigilosas da Lava Jato com o FBI.

Dallagnol receberia uma recompensa financeira através dos “assets sharing”, baseados nas multas que seriam cobradas das empresas e pessoas investigadas. Asset sharing é um jeito elegante de se referir à divisão de grana.

O JN TAMBÉM SE COMPLICOU

Não falta entre os analistas políticos quem acredite que a própria saída de Moro do governo, acusando Bolsonaro, possa ter sido arquitetada.

Ali teria início a sua campanha à presidência da República. Moro evitaria maiores desgastes com a permanência em um governo repudiado nacional e internacionalmente, conservaria o capital político conquistado e, de quebra, ainda teria tempo para fazer política.

Moro e Globo possivelmente não imaginavam a proporção que viria a assumir a guerra entre bolsonaristas e lavajatistas.

Fora do governo ela é visível, com pesadas acusações de parte a parte nas redes sociais e em manifestações públicas.

Dentro do governo, a coisa tende a ser mais sutil. Até porque Bolsonaro disputa com Moro quem é mais subserviente aos Estados Unidos.

Se a Lava Jato não tivesse se transformado em uma operação com ações e interesses próprios, muitas vezes seguindo orientações de fora do Brasil, o anúncio do seu fim não teria problema.

As forças tarefas são temporárias e precisam ser renovadas a cada ano. A Lava Jato está na sexta renovação.

Nesses anos de existência, no entanto, a Lava Jato arregimentou um enorme poder em grande parte devido à divulgação pelo JN de suas cinematográficas operações.

Não faltaram, no entanto, por parte dos acusados (empresários e políticos) denúncias dos abusos que estavam sendo cometidos, mas nada disso chegou ao conhecimento do  público em grande medida pela ação do telejornal da Globo.

Os advogados do ex-presidente Lula, Cristiano Zanin e Valeska Martins, por exemplo, lembram que antes mesmo de Lula ficar preso por 580 dias, já haviam demonstrado os absurdos que marcam o processo contra ele.

No caso do tríplex de Guarujá, que nunca pertenceu a Lula, sua condenação se deu por “atos indeterminados”.

Some-se a isso que ficou patente também que a Lava Jato tinha conseguido interferir  em ações do próprio STF.

Quem se lembra do exultante procurador Dallagnol, revelado pela #VazaJato, comemorando o apoio do ministro Luiz Fux, com o famoso “In Fux We trust”?

O que Moro e Globo também não imaginavam é que ainda estavam por vir novas e gravíssimas denúncias do The InterceptBR e parceiros. Denúncias às quais se somam os desdobramentos de ações iniciadas há mais tempo, contra Dallagnol e o próprio Moro.

No dia 7/7, por exemplo, deveria ter sido julgado pelo Conselho Nacional do Ministério Público a ação da defesa de Lula contra o abusivo Power Point elaborado por Dallagnol.

Na última hora, o julgamento foi adiado. O placar estaria muito equilibrado e os lavajatistas temeram a derrota.

O CNMP deverá apreciar também o pedido da OAB para que sejam investigadas as condutas de membros da Lava Jato, inclusive as de atuação do FBI em conjunto com agentes dos Estados Unidos em pleno território nacional.

Outro julgamento complicado que aguarda a Lava Jato será feito pelo STF.

Lá, com fartas provas de que o ex-juiz não agiu como magistrado, mas como parte da acusação, a corte deverá decidir se Moro estava ou não sob suspeição ao julgar Lula.

O ministro Gilmar Mendes quer que esse julgamento aconteça em setembro. Se a suspeição de Moro for aprovada, uma de suas consequências práticas é tornar nulas as sentenças contra Lula.

No TCU, igualmente, não falta quem já esteja investigando as operações da Lava Jato.

O curioso em tudo isso é que o JN também se complicou nessa história.

Antes criticado apenas pela esquerda por seu histórico de manipulações e de perseguição contra governos e governantes progressistas, ele agora também é alvo da fúria dos bolsonaristas.

Restou-lhe Moro e os lavajatistas. Daí o empenho em assessorá-los.

*Ângela Carrato é jornalista e pofessora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

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