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O vídeo acima faz uma profunda reflexão sobre o crescente avanço do individualismo no mundo atual.

Como vão perceber, a edição é diferente de outras Ahí les va! (Aí, está!), que já exibimos.

No programa de hoje, Mirko Casale, roteirista, apresentador e diretor de Ahí les va!, dialoga com o cientista político e escritor Alejandro Pérez Polo.

Alejandro é autor do livro Tú no eres especial: Mascotas, selfies y psicólogos, só disponível em espanhol.

Abaixo, a íntegra da transcrição. A tradução e as legendas em português (do vídeo) são de Jair de Souza, economista formado pela UFRJ; mestre em linguística pela mesma instituição.

Acompanhe

Mirko Casale — Nos encontramos na era dos telefones celulares, das redes digitais, dos selfies, na qual o culto ao ego está mais estendido e socialmente aceito que em toda a história da humanidade.

As chamadas “sociedades avançadas” são cada vez mais individualistas e suas reivindicações sociais são cada vez mais minoritárias e dispersas.

Essa glorificação do narcisismo como motor político e moral converte-se no sentido comum de não poucas nações, ou ex-nações, e o Homo sapiens parece estar sendo substituído pelo Homo egus.

E, embora isso possa parecer um fenômeno recente, o certo é que vem se manifestando, inicialmente num discreto crescendo, há décadas, até acelerar-se numa voracidade que hoje se mostra incontrolável.

Alejandro Pérez Polo — O individualismo é a religião da sociedade de consumo. E, portanto, sempre foi fomentada e sempre vai ser fomentada a partir, sobretudo, das instâncias de poder, principalmente do poder econômico, que o fomenta muito, sobretudo por meio do livre mercado. Afinal, todos os mecanismos do livre mercado fomentam o individualismo.

Mirko Casale — Ainda que pudéssemos buscar a origem desse fenômeno de egolatria social nas mudanças ocorridas na Europa Ocidental em razão do surgimento do calvinismo em seu aspecto moral e, posteriormente, na Revolução Industrial, em sua vertente econômica, o certo é que a fase atual tem uma fonte de inspiração bem mais próxima no tempo.

Alejandro Pérez Polo — No plano cultural, por exemplo, a partir dos anos 60, dos anos 68, das revoltas que todo mundo conhece nos E.U.A., a revolução sexual e lisérgica e também na França, em maio de 1968.

A partir de 1968, os estilos de vida vão se tornar uma fonte de rendas e uma fonte de mercantilização.

E isso vem sendo intensificado até o dia de hoje, até a atualidade. E é fomentado desde todas as instâncias do poder político e do poder empresarial, do poder econômico.

Mirko Casale — Assim, aquilo que começou como uma reivindicação de direitos e liberdades individuais foi se convertendo paulatinamente, mediante sua mercantilização, em uma forma de dominação maliciosamente perfeita, na qual o indivíduo crê que está se libertando, quando, em realidade, está sendo dominado.

E crê que está desafiando o poder estabelecido, quando, em realidade, o está reforçando.

Alejandro Pérez Polo — É uma forma de domínio, de dominação social, e não de libertação, porque, no fundo, o que significa para nós essa forma de individualismo é um aprisionamento de nós mesmos.

No fundo, é uma maneira de te dominar, porque certamente há um poder estrutural por cima, que está organizado.

Te domina, porque você acaba acreditando, entrando na lógica do individualismo mais extremado, de que você é quase um semideus, que você está sozinho no mundo e que, portanto, você tem que ir como um “self-made-man“, você tem de ir sozinho, como se você fosse um herói solitário, lutando contra todas as vicissitudes, ou contra todos os problemas do sistema, quando isso não é assim.

Por isso mesmo, o individualismo vai desembocar no narcisismo. E, por isso, é uma forma de te dominar, de dominar a todos nós.

Mirko Casale — Insistentemente, nos grandes meios e nas redes sociais, tratam de enfatizar que nossas capacidades individuais são a fonte para a solução de nossos próprios problemas e até mesmo os da sociedade em seu conjunto.

Assim, o individualismo seria a sustentação do sistema econômico, em primeiro lugar, mas também do político, do jurídico, do legal e até dos mais altos valores éticos que a humanidade já conheceu.

Ponto de vista que as elites do status quo defendem com total entusiasmo. E não por casualidade!

Alejandro Pérez Polo –O primeiro beneficiário do individualismo é aquela pessoa que ostenta o poder, é um rico, é, por exemplo, Jeff Bezzos, é, por exemplo, Elon Musk, é, por exemplo, Florentino Pérez, porque, ao final, o individualismo é uma ideologia que justifica a riqueza privada das pessoas que já detêm o poder privado.

Na verdade, o individualismo não apenas rompe a ideia de sociedade, a ideia de comunidade, a ideia de ser um coletivo, de poder ser povo outra vez. Senão que é uma ferramenta muito legitimadora da riqueza existente.

MIrko Casale — De forma paradoxal, mas não casual, o mesmo poder estabelecido que trata de convencer a sociedade de que, se cada um for por seu lado, todos chegaremos mais longe, não predica muito pelo exemplo.

Alejandro Pérez Polo — Aqueles que ostentam o poder sim que se organizam a nível coletivo, através de instâncias de governança mundial, ou, inclusive, a nível de acordos entre diferentes empresas.

O curioso é que o individualismo é utilizado, sobretudo, como livre mercado para os de baixo, para os pobres.

Porque, quando os de baixo sentem que quem está a seu lado é um concorrente, é um lobo, é impossível que se configure um interesse compartilhado, ou geral, que nos permita justamente avançar rumo a objetivos universais contra os que realmente concentram o poder, que são os de cima.

Portanto, o individualismo beneficia muito mais aos que estão por cima e a quem mais prejudica são os de baixo, ou seja, a nós. Porque nos impede de gerar vínculos com nossos vizinhos.

Mirko Casale — Uma vez esclarecido a quem beneficia e a quem prejudica a promoção do o individualismo como filosofia de vida, podemos nos perguntar até que ponto se trata de algo espontâneo, ou planificado.

Alejandro Pérez Polo — Evidentemente, há uma ideologia que serve como guarda-chuva de tudo isso, que seria o liberalismo, o liberalismo político, que é uma espécie de crença também metafísica sobre o indivíduo.

É uma dinâmica geral, uma dinâmica estrutural, que é complexo para determinar se há uma instância ou tal. Não é que se trate de uma conspiração.

Não há ninguém planificando-o em um quartinho por aí, entre pitadas de cigarros Winston, senão que é uma lógica estrutural de como nós habitamos o mundo.

MIrko Casale — Esta transformação estrutural pode ser representada, se observarmos com atenção, como tem evoluído algo ao qual todos vocês estão olhando neste preciso momento: as telas.

Alejandro Pérez Polo — Se formos analisando, faz 50 anos que as telas vêm se tornando cada vez menores.

Desde o cinema, em que eram vistas por 100 pessoas juntas, a tela grande do cinema. Já, a tela da televisão a gente via em quatro ou cinco. A tela do computador, a qual é vista, quando muito, por dois…, à tela do telefone celular, que já, isso sim, só pode ser vista por uma pessoa.

A gente pode ir observando como de uma tela grande, vai-se reduzindo até que seja só uma micro tela, que pode ser vista apenas por você.

E é verdade que tudo faz parte da mesma forma de habitar o mundo ou de nos entendermos como seres humanos.

Cada vez mais privatizado, cada vez mais solitário, cada vez mais isolado e cada vez mais individualista.

Mirko Casale — Todo este fenômeno individualizante, logicamente, tem um marcado caráter político e geopolítico.

A egotização da sociedade não avança da mesma maneira em todos os países.

Alejandro Pérez Polo — Eu creio que o individualismo penetra melhor nas sociedades protestantes, nas sociedades, por exemplo, na Europa, no norte e em países como o Reino Unido, Estados Unidos, ou Canadá.

Seus âmbitos de influência também se tornam curiosamente muito individualistas. Por exemplo, o Chile, assim como a Coreia do Sul.

Sociedades que já foram comunistas, como, por exemplo, os países do leste: Rússia, China, Vietnam, custam mais a serem penetrados por essas lógicas individualistas porque não têm a recordação imediata de terem vivido em uma sociedade que apregoava o indivíduo por cima do coletivo, que apregoava a inquietude pessoal por cima de tudo.

Mirko Casale — Inclusive a visão de nação e a realização de metas e objetivos de governo ou autoridades também se vê afetada pela forma com a qual o individualismo penetra, ou não, no inconsciente coletivo, ou, segundo o caso, individual.

Alejandro Pérez Polo — Nos surpreende ver como na China os planos de governo ainda são para o ano 2050. Eles fazem planos quinquenais e também fazem planos a vinte anos do momento. Mas, apenas se pensarmos no coletivo faz sentido pensar em 20 anos adiante.

Porque vamos pensar em um legado quando a gente já não vai estar aqui.

Para uma sociedade individualista, fazer planos para além de amanhã não faz muito sentido, porque, provavelmente, amanhã a gente já não vai estar. E como eu só me importo comigo, e meu tempo de vida é muito mais limitado que o tempo de vida de uma coletividade, já que uma coletividade tem memória de milhares de anos por trás, ou no mínimo de centenas.

Mirko Casale — Assim, tendo em mente o contraste entre sociedades mais coletivistas e sociedades mais individualistas, é mais simples entender porque em muitos países do norte global a política se transformou em um de tantos fenômenos mercantilizáveis.

Alejandro Pérez Polo — Uma das consequências é o surgimento de lideranças POP, que unicamente pensam em si mesmos, e não no conjunto. Eles nem sequer pensam em uma continuidade a longo prazo de sua comunidade, de seu partido, ou mesmo de suas ideias.

Quer dizer, as lideranças de hoje são articulados muito em torno do efeito midiático, por exemplo, do golpe de efeito.

E à construção de atributos individuais para sua própria manutenção do poder, sem nem sequer pensar nos legados, ou sem nem sequer pensar em que suas organizações sobrevivam a eles próprios.

No final, o que alimenta o individualismo a nível de comportamento eleitoral, de comportamento político, é o tema de que as pessoas esperam que esteja todo o cardápio, deste tipo de ofertas políticas, que elas se ajustem muito, se ajustem muito às demandas particulares que a sociedade tenha em um momento dado, sem, uma vez mais, capacidade de transcendência, ou o tema de valores.

Mirko Casale — Embora o individualismo como corrente filosófica apresente a si próprio como o mais acérrimo defensor da liberdade, paradoxalmente, faz isso partindo de uma definição tão clássica como discutível sobre o que, no fundo, significa ser livre.

Alejandro Pérez Polo — O problema é que é impossível ser livre se todo mundo for individualista. E isto parece muito contraditório de entrada…

Claro, aqui, a concepção clássica do liberalismo é “minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro”.

Quer dizer, que numa sociedade liberal, a outra pessoa, os outros, são todos limitações a minha liberdade, eu sou menos livre tão logo me relacione com outra pessoa.

Com essa ideia de que a liberdade terminaria quando começa a liberdade do outro, que é a ideia clássica, isto induziria a pensar que a gente só seria livre em uma ilha deserta. Ou em uma ilha cibernética. Quer dizer, que só é livre Tom Hanks, no filme ‘Náufrago’.

Por outro lado, quando pensamos que a liberdade começa com a liberdade do outro, ou seja, que a gente só é livre em comum, porque eu sou livre porque o outro é livre. Eu só posso ser livre na medida em que a outra pessoa é livre. Senão, há tão somente escravidão.

Mirko Casale — Tendo chegado a este ponto, a pergunta que podemos, ou melhor, devemos, nos fazer é: Aonde nos conduz essa forma de nos entendermos como espécie? E, sobretudo, si existe alternativa.

Alejandro Pérez Polo –Eu creio que o império do ‘eu’ que é imposto por todas as forças possíveis ao final fracassa, ou tem de fracassar, porque, no final, aquilo que nos torna mais felizes, justamente falando da felicidade, o que de fato nos torna mais felizes em geral costuma ser o encontro com o outro. Não é?

Costuma ser um casal, o amor… Costuma ser a amizade, costuma ser a família…

No final, quando há uma experiência coletiva, a gente, ainda que pareça que não, é mais feliz. O que nos faz humanos é a vida em comum, é a sociedade. É o que nos torna humanos.

Portanto, ainda que haja um processo de desumanização através do individualismo, porque o individualismo é uma desumanização, é convertermo-nos em robôs isolados.

No final, até mesmo Tom Hanks, em ‘Náufrago’, teve de criar um humano para poder viver em comum.

Então, eu creio que ainda que a sociedade tenda a esse colapso, tenda a essa fragmentação, a essa distopia de um filme…, digna de um filme de zumbis em que cada um apanha um fuzil, um capacete
e umas latas de conservas para sobreviver ao restante, no final, é a vida em conjunto, é a vida em comum o que vai nos salvar, ou vai garantir uma sobrevivência de todos como espécie, e a nível coletivo também como indivíduos. Como sujeitos.

Mirko Casale — Como veem, poderíamos dizer que já estamos imersos numa espécie de era do Homo narcisistus.

Mas, do mesmo modo que entramos nela quase sem nos darmos conta, se adquirirmos consciência, também poderemos sair.

Por isso, nesta oportunidade, nos atrevemos a sugerir-lhes não apenas que compartilhem e comentem este vídeo em telas projetadas para serem vistas por uma só pessoa a cada vez, senão que, além disso, junto a vizinhos, amigos, colegas de trabalho ou familiares, sentem-se juntos e, falando frente à frente, escutando-se e olhando-se nos olhos, conversem sobre o tema.

O poder estabelecido quer que sejamos cada vez menos humanos. A única forma de impedi-lo é nos esforçando para sê-lo cada dia um pouco mais.

*Mirko Casale é o roteirista, apresentador e diretor do programa Ahí les va! (Aí, está!), que há cinco anos a RT transmite para países de língua espanhola.

Com informações do VioMundo

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