Foi um gasto de 1,4 bilhão de euros, ou mais de 7 bilhões de reais, para “melhorar a qualidade” do Sena em Paris. O banho no rio é proibido para humanos há mais de cem anos, devido à alta quantidade de coliformes fecais. Raras são as espécies de peixes sobreviventes. A promessa de torná-lo banhável remonta há mais de 30 anos para se “concretizar” nos Jogos Olímpicos de 2024. Apenas no esporte e olhe lá. Uma quinta prova foi cancelada nesta terça-feira no rio por conta da quantidade elevada de sujeira. O triatlo finalmente aconteceu nessas águas, mas as notícias de atletas doentes depois de participar das provas se sucedem. Um fiasco bilionário?
O presidente da França Emmanuel Macron é um dos quais havia prometido banhar-se no rio para provar a qualidade da água, promessa não cumpriu. A tarefa foi delegada para sua Ministra do Esporte, que justificou que o chefe de Estado tinha “outras prioridades”.
Treze dias antes da cerimônia, Amélia Oudéa-Castera mergulhou num traje cobrindo-a quase por completo. Apenas o rosto e o pescoço eram visíveis. No verão, período do mergulho da ministra, o rio normalmente tem um número três vezes maior de coliformes fecais do que o índice aceitável para o banho na Europa.
A cenografia fracassou parcialmente do ponto de vista da comunicação política, virando alvo de piadas na internet. A entrada no rio acabou sendo por um deslize. “Um grande momento de intensidade”, classificou a ministra. “Felicidade de poder nadar no Sena”. Ela disse que não esquecerá nunca mais.
A nove dias do dia D, foi a vez da prefeita de Paris. “Sem os Jogos, não o teríamos feito”, comemorou Anne Hidalgo. “Tornar possível recuperar o rio para seus habitantes para poder se banhar nele… Imagine, em um ano, um local de banho aqui, uma piscina, para todos que quererão vir nadar”, previu.
“Teremos três outros locais de banho”, anunciou. “Precisamos adaptar nossas cidades às mudanças climáticas e reencontrar o rio”, justificou.
“Dia de sonho”. O mergulho, adiado diversas vezes, estava feito, desta vez numa excelente peça de comunicação, com nados “crawl”, numa água saudada pela eleita municipal. “Doce e maravilhosa”. Tony Estanguet, presidente dos Jogos de Paris, nadou junto com a prefeita.
No meio da prova do triatlo, após o nado, o atleta canadense Tyler Mislawchuk foi filmado vomitando, imagem que viralizou. Ele disse ter vomitado dez vezes diante do forte calor dos últimos dias, sem que houvesse ligação com a qualidade do rio Sena. “Eu estava com o estômago cheio”, declarou. “Essas coisas acontecem”.
O canal de TV da França TF1 apontou o vômito após esforço intenso como normal segundo a literatura científica.
As dúvidas sobre a qualidade do Sena se reforçaram dias depois. “Claire Michel, infectada pela bactéria E. Coli, está hospitalizada há quatro dias e o suíço Adrien Briffod sofre de uma gastro-enterite que o impedirá de partir domingo na prova mixta”, noticiava o jornal francês Le Figaro, domingo. A fonte da informação seria o De Standaard , jornal da Bélgica.
A bactéria Escherichia coli é um coliforme fecal, assim como os enterococos, servindo de parâmetro para a análise da qualidade aquática para o banho.
O jornal belga La Libre chegou a afirmar que Claire a equipe belga de triatlo declarou renunciar à prova por conta de uma “doença ligada a um banho no Sena”.
O Comitê Olímpico Belga desmentiria a hospitalização nesta segunda-feira, afirmando ainda assim que Claire foi levada à policlínica da Vila Olímpica no domingo pela manhã, mas que estava de volta ao seu quarto. A Bélgica não participou da prova na segunda.
O Le Figaro pôs entre aspas o termo informação equivocada: “Claire Michel nunca esteve hospitalizada depois de seu banho na Sena, ‘uma informação errada’ da imprensa belga”. No texto, o erro é afirmado.
“Nadando sob a ponte, senti e vi coisas nas quais eu não deveria pensar muito”, criticou a também belga e triatleta Jolien Vermeylen.
O jornal Le Figaro notou que Claire afirmou-se doente no mesmo dia de participação da prova, enquanto a infecção por E. coli levaria entre 3 e 4 dias para se manifestar. Mas o periódico francês noticia nesta terça-feira um terceiro atleta infectado pela bactéria, dois dias depois de levar a medalha de prata no triatlo.
As informações vêm de uma entrevista concedida pelo medalhista neozelandês Hayden Wilde à rádio 1 news de seu país, à qual ele aponta um segundo triatleta da delegação doente. A rádio pública neozelandesa RNZ aponta que tal atleta, não identificado, tem os mesmos sintomas de Hayden, uma infecção por E. coli.
Depois de seu excelente resultado na prova do dia 31 de julho, Hayden disse que se sentiu cansado ao longo dos treinamentos dos dias seguintes.
Na final do triatlo mixto por equipes nesta segunda-feira, Hayden caiu de bicicleta. A Nova Zelândia terminou em décimo-quarto lugar, com uma queda de um atleta no ciclismo.
Segundo Anne Descamps, porta-voz dos Jogos Olímpicos, a decisão de manter a prova no Sena depois de dois adiamentos por má qualidade da água foi tomada pela Federação Internacional do Triatlo. Um dos testes apontou que os índices de coliformes fecais era superior ao aceitável.
Descamps disse que os atletas foram informados e não se opuseram a participar.
Nesta segunda, a prefeitura de Paris disse que nenhuma correlação de causalidade entre a poluição do Sena e as doenças adquiridas pelos atletas pode ser estabelecida, dado o intervalo de 4 dias entre a participação da prova e a aparição dos sintomas.
No sábado, o atleta suíço Adrien Briffod também teria tido uma infecção gastro-intestinal, segundo o jornal compatriota Le Matin, anunciando sua desistência da prova de segunda-feira.
Nesta terça-feira, houve o quinto cancelamento de uma prova no rio Sena por considerar-se que o rio estava inadequado para o banho.
Em entrevista exibida pelo canal de TV France 2 nesta terça, turistas elogiaram a limpeza da capital francesa. “Não vou nadar no Sena”, ponderou um deles.
A poluição do Sena, leia-se a alta concentração de coliformes fecais, é atribuída ao despejo da rede de esgotos. Ela aumenta quando chove, dada a mistura da água da chuva com o despejo do esgoto.
Estruturas colossais de saneamento foram construídas inclusive fora da capital francesa, uma delas com mais de 8 km de extensão. Uma bacia subterrânea custou mais de 90 milhões de euros, montante superior a 500 milhões de reais, para captar a água das chuvas.
Bacias como essa “reduzirão ainda mais as poluições microbiológicas”, avaliou a cientista Françoise Lucas, em entrevista a um dos departamentos na região metropolitana de Paris.
Depois de uma forte degradação da poluição até os anos 1980, a professora reconhece um processo de despoluição efetiva a partir dos anos 1990 e aponta os Jogos Olímpicos como um “motor que nos fez ganhar muitos anos”.
Algumas influenciadoras se aventuraram a sentir o cheiro do rio Sena na palma da mão. “Merda”, reagiu uma delas.
Para além dos coliformes fecais, os rejeitos químicos de indústrias também prejudicam a qualidade do rio. Excrementos de animais também são apontados por cientistas.
“Reconquistamos o Sena e a qualidade ambiental”, orgulhou-se um dos adjuntos à prefeitura de Paris.
Três locais para nado público foram anunciados na capital francesa para o ano que vem, um nas proximidades do Ministério da Economia, outro, da prefeitura, assim como à beira da Torre Eiffel.
Independentemente das confirmações oficiais da água do Sena como fonte de contaminação dos atletas dos Jogos Olímpicos ou não, um fiasco é notável: o ecocídio cometido pela civilização francesa contra o rio.
Quando candidata às eleições presidenciais em 2022, a prefeita de Paris Anne Hidalgo propôs justamente a criação de um tribunal penal internacional para crimes ambientais. Massacrada nas urnas, ela obteve 1,75% dos votos.
No caso do Sena, fica a dúvida sobre quem deveria parar no banco dos réus.
Com informações do Diário Centro do Mundo
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