Em tempos de julgamento estrepitoso, não custa ter em mente outros que, medidas as devidas proporções, mobilizaram a opinião pública, por seus desfechos polêmicos e injustos.
Olhar para trás, talvez nos ajude a ter cautela, em tempos de paixões exacerbadas, fragilidade jurídica, e excesso de influência midiática.
Podemos evocar o julgamento de Sacco e Vanzetti, ocorrido há 80 anos, quando o mundo foi abalado pela execução de dois simples operários, de nomes Nicolau Sacco e Bartolomeu Vanzetti, vítimas de um fanático anticomunismo, que varria a sociedade estadunidense na década de 1920.
E, ainda, o caso Dreyfus, motivo de uma carta aberta escrita por Émile Zola (1840 – 1902), sob o título “J’Accuse!” – do francês, “Eu Acuso” -, publicada no dia 13 de janeiro de 1898. Uma contundente e implacável “denúncia” contra os oficiais que ocultaram a verdade no processo em que o oficial francês de origem judaica, Alfred Dreyfus, foi acusado injustamente de traição e espionagem. O Caso Dreyfus é, sem dúvida, um dos maiores e mais polêmicos erros judiciários da história.
Quatro anos após a morte de Zola (29/9/1902), em 1906, o Exército francês admitiu o irreparável erro, reintegrando Alfred Dreyfus, que chegou a receber uma medalha da Legião de Honra. Dreyfus morreu em 1935.
Na época, (1895) o jurista Rui Barbosa vivia na Inglaterra e, logo após o julgamento e a condenação de Dreyfus escreveu para o Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, texto em que apontava as questões políticas e, especialmente, jurídicas, para expor a ilegalidade e inconsistência do processo contra o capitão Dreyfus.
Rui Barbosa destacou o absurdo da única “prova” contra Dreyfus, ter sido um bordereau em que se baseou a acusação e o levou a ser condenado. Salientou Rui, que a defesa – Fernand Labori e Charles Demange – além de não terem acesso ao citado documento, quando tentavam contestar a autenticidade da “prova”, tinham suas vozes cortadas. (Alguém já viu esse filme?)
E, por fim, retrocedendo ao irremediável, ao julgamento de Sócrates, tem-se conhecimento do que foram as suas últimas horas, julgado e condenado sob acusações do poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles e influente orador e político, Anitos, e por Licão, personagem de pouca importância.
Atribuíram a Sócrates, falta muito grave, no contexto da Grécia antiga: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude.
O relato produzido por Platão, tornou-se conhecido como “Apologia de Sócrates”. É dividido em três partes e foi considerado bastante fiel aos fatos. (Teria sido uma das primeiras coberturas jornalísticas?)
Sócrates examina e refuta as acusações que pairam sobre ele, reconstituindo a sua própria vida e procurando mostrar o verdadeiro significado de sua “missão”. E proclama aos cidadãos que deveriam julgá-lo: “Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos de vossos corpos e de vossos bens do que da perfeição de vossas almas, e a vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública, quer na vida privada. Se, dizendo isso, eu estou a corromper a juventude, tanto pior; mas, se alguém afirmar que digo outra coisa, mente”.
Em outro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com um de seus acusadores, Meleto, deixando-o embaraçado quanto ao significado da acusação que lhe imputava – “corromper a juventude”. Demonstra que estava sendo acusado por Meleto de algo que o próprio Meleto não sabia bem explicar o que era, já não conseguia definir com clareza o que era bom e o que era mau para os jovens. (Qualquer semelhança com a realidade…)
Voltar tantos séculos para falar do julgamento do dia 24 de janeiro, quando Luiz Inácio Lula da Silva estará – ele faz questão de ir a Porto Alegre – diante de um conjunto de acusadores que fartamente já o condenaram pela mídia, é um exercício. Nunca é demais demonstrar que, desde os primórdios do se convencionou chamar de doutrina e dos conceitos do “Direito”, a grande questão que se coloca para a sociedade não é apenas o julgamento em si, mas o pré-julgamento a que está exposto o acusado.
Segundo o relato de Platão, em nenhum momento Sócrates, diante dos seus julgadores, apelou para a bajulação ou tentou angariar a misericórdia da corte. Enfrentou com serenidade os seus algozes: “Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se absolver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convencê-lo”, disse o filósofo, para seus acusadores.
Embora a demonstração pública da inconsistência dos argumentos dos que o acusavam, a tranquilidade demonstrada, e a e reiterada declaração de inocência – e talvez justamente por mais essas manifestações de altaneira independência de espírito -, Sócrates foi condenado.
Cabe, neste século XXI, estar atento ao resultado de se julgar com superficialidade um ex-presidente com o peso político de Lula. Corre-se o risco de os acusadores enfrentarem um julgamento bem mais pesado. O da história. E, ademais, quem se lembra de Meleto, Anitos e Licão?
Referências:
Eu acuso! O processo do capitão Dreyfus. Émile Zola, Rui Barbosa, op. cit.
Immanuel Kant, Introdução à crítica do juízo. 2 ed, [Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho], São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores)