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Decreto de Bolsonaro é o desmonte da política de educação inclusiva

Por Claudia Pereira Dutra, exclusivo para o Viomundo

Os movimentos sociais de defesa dos direitos das pessoas com deficiência e diversos setores, identificados com a luta histórica da inclusão, acompanham com preocupação e indignação, a publicação do decreto nº 10.502, de 30/09/2020, do governo Bolsonaro.

Ele institui a chamada “nova” Política Nacional de Educação Especial (PNEE), em substituição Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (MEC, 2008), considerada uma conquista da sociedade brasileira e reconhecida por seus resultados efetivos.

Desprezando que a PNEEPEI (2008) é compreendida como uma evolução conceitual que retirou o país de um atraso de 30 anos, o referido decreto não apresenta qualquer avanço legal ou pedagógico em relação às diretrizes e aos objetivos estabelecidos pela política que extingue, prestando-se, justamente, à eliminação dos fundamentos da inclusão.

O governo Bolsonaro retoma o modelo médico/integracionista, vigente no Brasil até o início do século XXI, e volta a orientar a organização segregativa dos sistemas de ensino, submetendo estudantes com deficiência a critérios classificação, seleção e encaminhamento para escolas e classes especiais, separados dos demais estudantes.

Foi exatamente esse modelo de ensino especial substitutivo, que condiciona o acesso das pessoas com deficiência ao ensino comum com base em conceitos e estereótipos “capacitistas” que a política de educação inclusiva veio alterar.

A PNEEPEI (2008) foi construída nos marcos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (ONU, 2006), cujo propósito é promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência.

O entendimento da deficiência como um conceito em evolução e que resulta da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, consolidado pela Convenção, altera profundamente a concepção de serviços e
políticas para esse grupo social.

A política educacional passou a enfatizar o contexto social, a eliminação das barreiras físicas e pedagógicas, objetivando assegurar o pleno acesso de todos ao ensino regular e a educação especial passou a ser compreendida como modalidade,
responsável pela oferta do atendimento educacional especializado (AEE), complementar ou suplementar à escolarização, e pelos demais serviços e medidas de apoio à inclusão escolar.

Na contramão da Convenção (ONU/2006) que reconhece que para a realização do direito à educação das pessoas com deficiência, sem discriminação, e com base na igualdade de oportunidades, deve ser assegurado um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, Bolsonaro opera um enorme retrocesso em relação ao Modelo Social que embasa a PNEEPEI
(2008).

Com base em categorias fixas de deficiência entranhadas em discursos e práticas discriminatórias, o governo usa a retórica da “flexibilização”, diz que algumas pessoas “não se beneficiam da escola regular” e que o ensino em ambiente segregado é “direito de escolha” dos pais, ignorando que o direito à educação é um direito humano fundamental, inalienável e indisponível.

Esses dispositivos usados pelo governo, que diz atender as especificidades dos estudantes, na realidade, representam a negação do princípio da “inclusão plena” estabelecido pela Convenção.

É preciso identificar e interromper tais manobras e tentativas de burlar o princípio da não discriminação “por motivo de deficiência”, definido pela Convenção como qualquer diferenciação, exclusão baseada em deficiência, que tenha como efeito ou propósito de impedir ou restringir o exercício e o gozo, em igualdade de oportunidades, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Um sistema educacional inclusivo não dispensa o atendimento educacional especializado, ao contrário, promove, expande e garante a organização e a oferta do conjunto de recursos e serviços de acessibilidade, integrados no projeto pedagógico das escolas.

Portanto, o decreto de Bolsonaro que institui a dita “nova” política de educação especial não atende o compromisso assumido pelo Estado brasileiro de assegurar que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema geral de ensino sob a alegação de deficiência e de adotar as medidas necessárias a sua efetiva participação, em ambientes que maximizem o seu desenvolvimento acadêmico e social.

Lembrando que a CDPD (ONU, 2006) foi ratificada pelo Brasil com equivalência de Emenda Constitucional – Decreto Legislativo n. 186/2008 e Decreto do Executivo n° 6.949/2009, que estabelece o sistema de ensino inclusivo em todos os níveis, como o modelo que atende aos princípios de inclusão, não discriminação, acessibilidade, igualdade oportunidade, nela contidos.

A implantação de políticas para construção de um sistema educacional inclusivo é um dos marcos dos governos do PT, que direcionaram apoio e fomento às ações intersetoriais de pesquisa, formação profissional, acessibilidade arquitetônica, nos materiais didáticos, nos transportes e comunicações.

A discussão das diretrizes e a construção da política na perspectiva inclusiva iniciaram em 2003, com o Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, em parceria com 142 municípios-polo, envolvendo a participação de mais de 180 mil gestores e educadores em todo o país.

Alinhado aos processos de formação, o Programa de Implantação Salas de Recursos Multifuncionais disponibilizou equipamentos, recursos de tecnologia assistiva, materiais pedagógicos e mobiliários para a organização e a oferta o atendimento educacional especializado nas escolas regulares.

Essa ação contemplou 42 mil escolas, em 93% dos municípios brasileiros, entre 2003 e 2015.

A política de financiamento da educação consolidada no governo Lula, com atuação importante do ministro da Educação Fernando Haddad, foi fator determinante para reverter o atraso do desinvestimento em acessibilidade nos sistemas de ensino.

O Decreto nº 6.571/2008 institui a chamada “dupla matrícula”, no âmbito do Fundeb, que permite o cômputo das matrículas dos estudantes público alvo da educação especial nas classes comuns da rede pública de ensino e a sua matrícula concomitante no atendimento educacional especializado.

Expandiram, ainda, as ações de acessibilidade, o Programa de Formação Continuada de Professores na Educação Especial, em parcerias com as universidades, que garantiu:

— a formação de 98.550 professores em cursos de especialização e aperfeiçoamento;

— o apoio aos projetos de acessibilidade arquitetônica, assegurado para 57, 5mil escolas públicas por meio do PDDE Escola Acessível;

— aquisição e entrega de 2.700 veículos para o transporte escolar acessível, em 1.437 municípios, via Programa Caminho da Escola.

No âmbito da política de educação especial inclusiva, foram criadas as condições para a oferta da educação bilíngue no país.

Por meio do Decreto nº 5626/2005 foi regulamentada a Lei de Libras (10.436/2002) sob coordenação do MEC e, imediatamente, teve início a certificação da proficiência em Libras de 7.940 profissionais, além da criação do curso de graduação Letras – Língua Brasileira de Sinais/Libras, implantado em 30 universidades federais, com 2.250 vagas anuais para professores e tradutores e intérpretes.

Nesse contexto, o Projeto Livro Acessível promoveu a produção e a disponibilização de livros em braille e nos formatos digitais acessíveis, de dicionários trilíngues (Libras, Português e Inglês), de laptop e de recursos e aplicativos de acessibilidade aos estudantes; além do apoio à implantação de núcleos e acessibilidade nas áreas de deficiência visual, deficiência auditiva e altas habilidades/superdotação, nas 27 Unidades Federadas.

Com o Programa BPC na Escola, a partir de 2007, o governo federal, em parceria com estados, municípios e o distrito federal, passou a acompanhar o acesso à escola das pessoas com deficiência, de 0 a 18 anos, beneficiárias do Benefício da Prestação continuada – BPC, desenvolvendo ações de identificação e eliminação de barreiras, busca ativa e formação de
gestores das áreas da educação, saúde e assistência e diretos humanos.

Na educação superior e tecnológica, o Programa Incluir compreendeu a implantação dos núcleos e ações de acessibilidade nas instituições federais de ensino; e o Programa de Apoio à Pesquisa em Educação Especial – PROESP/CAPES, fomentou o aprofundamento de estudos na área.

A partir do compromisso com o direito à educação inclusiva, estabelecido na CDPD (ONU, 2006) e na Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), plenamente contemplados na PNEEPEI (2008), o Brasil avançou no acesso à educação.

Os dados do Censo escolar registram a evolução das matrículas dos estudantes público alvo da educação especial:

— na educação básica, as matrículas passaram de um patamar de 504 mil em 2003, para 971 mil em 2016, alterando o percentual de inclusão em classes comuns de um índice de 24% para 85%;

— na educação superior, crescimento foi de 5.078 matrículas para 33.475, nesse período.

Passados dez anos da implantação da PNEEPEI (2008), os avanços e conquistas da inclusão se refletem na pesquisa Datafolha O que a População Brasileira Pensa sobre a Educação Inclusiva (2019), a qual aponta que a população brasileira é predominantemente favorável à inclusão escolar: cerca de 90% dos entrevistados concordam que as escolas se tornam melhores com a inclusão e 80% concordam que estudantes com deficiência aprendem mais na escola inclusiva, discordando de afirmações, como “estudantes com deficiência atrasam o aprendizado dos demais”, “é melhor para pessoas com deficiência estudarem só com outras pessoas com deficiência”, “a escola pode escolher se aceita matricular crianças com deficiência”.

Diante de tantas transformações da PNEEPEI (2008) e dos efetivos avanços na construção do sistema educacional inclusivo, o decreto do governo Bolsonaro é considerado um golpe para a inclusão.

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID, ao tomar conhecimento da sua publicação, em Nota de Repúdio ao Decreto nº 10.502/2020, de 30.09.2020, afirma:

“ é uma afronta desmedida à Constituição da República, à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e à Lei nº 13.146/2015, em flagrante retrocesso às conquistas obtidas em relação ao direito humano à Educação Inclusiva”, constatando que o mesmo “deve ser declarado inconstitucional e expurgado da legislação brasileira, com a maior urgência possível”.

* Claudia Pereira Dutra foi secretária da Educação Especial (SEESP) e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), do MEC, nos governos Lula e Dilma.

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