Imagens: Ricardo Stuckert/PR, reprodução de rede social e charge de Carlos Latuff
Na Venezuela se joga o futuro de uma América Latina soberana
Há mais de uma semana que o governo da Venezuela frequenta, como vilão, as manchetes da mídia corporativa brasileira e as da maioria do chamado Ocidente (EUA e aliados).
Antes mesmo da eleição presidencial, que deu vitória a Nicolás Maduro, para mais um mandato, a gritaria da oposição e da extrema-direita que a apoia, já era enorme.
Figuras como os presidentes da Argentina, Javier Milei, do Peru, Dina Boluarte, e do Equador, Daniel Noboa, estavam entre os primeiros a questionar o resultado dessa eleição.
Questionamentos logo encampados pelos bolsonaristas, por demais extremistas de direita e até por parte de setores da esquerda, que nunca simpatizaram com a Revolução Bolivariana e o seu Socialismo do Século XXI, preconizados por Hugo Chávez e continuado por Maduro.
A Venezuela conta com um sistema de votação dos mais seguros e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um poder autônomo, tem, em situações normais, 72 horas para proclamar o resultado.
No entanto, houve registro de queima de urnas em várias seções e o sistema foi alvo de ataque por hackers situados na Macedônia do Norte.
Mesmo assim, pouco antes da meia noite do próprio domingo, com 80% das urnas apuradas, era anunciada a vitória de Maduro.
Foi o que bastou para “democratas” nos Estados Unidos, em países europeus e na América Latina, inclusive no Brasil, engrossarem o coro de que “a eleição foi fraudada”.
É curioso observar que isso foi dito apenas por convicção, uma vez que esses setores não tinham acesso aos resultados.
Não faltou nem mesmo quem garantisse que o principal candidato de oposição, Edmundo González, havia vencido com 70% dos votos, um número no mínimo cabalístico, pois não se sabe de onde foi tirado.
De lá para cá, a história se desenrola diante dos nossos olhos.
Cabem muitas perguntas que precisam ser feitas e cujas respostas a mídia corporativa esconde de seu “respeitável público”.
A primeira delas – e talvez a mais óbvia – é que os candidatos de oposição a Maduro eram nove e não apenas Edmundo González Urrutia. Por que só o nome de Urrutia é mencionado?
Convenientemente só ele é mencionado, porque foi o único a não aceitar o resultado. Fato que já era previsto, uma vez que também foi o único a não assinar o acordo, estabelecido meses antes, de que o resultado das urnas seria acatado por todos.
Outra questão, igualmente fundamental, é sobre o próprio Urrutia. Quem é essa figura, que apareceu de repente no processo eleitoral?
A explicação rasa que a mídia corporativa deu é que se tratava de um embaixador aposentado e que contava com o apoio da oposicionista Maria Corina Machado.
Urrutia não é apenas um embaixador aposentado. É uma daquelas figuras que, há anos reside em Miami, e sempre se mostrou mais ligado aos Estados Unidos do que ao seu país natal.
Não por acaso foi o nome apoiado pelo Tio Sam para funcionar como fachada para a candidatura de Corina, inelegível por 15 anos pela legislação do seu país.
A mídia nunca explica por que Corina se tornou inelegível, apresentando-a como “vítima” de perseguição.
Corina não tem nada de vítima. Filha de uma das famílias mais ricas da Venezuela, cuja fortuna envolve obscuras transações com petróleo, ela é uma conhecida golpista desde 2002, quando a oposição tentou derrubar Hugo Chávez e foi derrotada.
Chávez havia sido eleito três anos antes e vinha se pautando pela defesa das riquezas da Venezuela, a começar pela estatização da PDVSA, a Petrobras de lá, até então a serviço dos interesses da elite local e dos Estados Unidos.
Chávez ficou fora do poder menos de 48 horas e ao reassumir o Palácio de Miraflores, escancarou o papel dessa turma que, com o auxílio da CIA e demais órgãos de espionagem dos Estados Unidos, tentou assumir o governo da Venezuela na mão grande.
Desde então, Corina é figurinha carimbada, presente em todas as tentativas de desestabilizar os governos chavistas.
Algumas de suas atuações foram fundamentais para que se tornasse inelegível: ter defendido publicamente, em eventos internacionais, que as sanções econômicas contra a Venezuela fossem ampliadas e que não se fornecessem vacinas contra o covid-19 ao seu país.
Some-se a isso que, como deputada, teve suas prestações de contas questionadas por não explicar uma série de gastos e utilização indevida de dinheiro público.
Longe de ser uma “brava mulher” que luta em defesa de seu país, Corina é uma golpista que, para melhor compreensão do público brasileiro, deveria ser apresentada como um misto de Aécio Neves e de Jair Bolsonaro, por questionar os resultados eleitorais, por defender uma plataforma neoliberal das mais radicais e pela subserviência aos interesses do Tio Sam.
Alguém viu a mídia corporativa divulgar, por exemplo, que a plataforma eleitoral de Urrutia, na realidade a de Corina, é pela privatização de tudo na Venezuela, a começar pelo petróleo?
Alguém viu a mídia corporativa fazer algum comentário sobre a plataforma de Urrutia ser mais à extrema-direita do que a de Milei?
Chegamos assim ao ponto central da questão. A gritaria contra os resultados da eleição na Venezuela é, na prática, a continuidade da tentativa de derrubar o governo bolivariano.
Como golpes de estado não deram certo, como as sanções econômicas também não conseguiram indispor a maioria da população contra o chavismo, a estratégia agora é tentar empossar uma oposição sem votos.
Todos os latino-americanos deveriam estrar atentos ao que se passa na Venezuela, pois o efeito Orloff (“eu sou você amanhã”) é bastante óbvio.
Com o visível declínio do poder dos Estados Unidos na cena internacional e o mundo multipolar nascendo, o Tio Sam volta seu interesse de forma mais acentuada ainda para a América Latina.
Desde que foi anunciada, em 1823, pelo Congresso dos Estados Unidos, a Doutrina Monroe, aquela da “América para os Americanos”, sinalizava o que viria depois.
Inicialmente saudada como a defesa da não ingerência dos países europeus nos países americanos e que nenhuma nação americana fosse recolonizada, transformou-se em nova recolonização.
Tem sido assim desde então.
São inúmeros os golpes que os ocupantes da Casa Branca (independente de serem democratas ou republicanos) desferiram contra governos democraticamente eleitos na América Latina.
No passado, os agentes destes golpes eram militares, treinados na antiga Escola das Américas, cuja sede localizava-se no Panamá. Instituição que treinou também forças militares e paramilitares na tortura a adversários do regime.
Os golpes militares na Bolívia, no Paraguai, na Argentina, no Chile e no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970 são exemplos disso. As bárbaras mortes e torturas que se seguiram a eles, também.
Após a redemocratização nos anos 1980 e com esse tipo de golpe tendo ficado muito desgastado, o Tio Sam passou a aplicar aqui o que se conhece como “guerra híbrida”, um conjunto de ações para mudar governos que considerem adversários sem desgaste para a Casa Branca.
No lugar dos canhões, das tropas nas ruas ou mesmo dos bombardeios aéreos, entra em campo a atuação de políticos oposicionistas cooptados, de ONGs bancadas pelas grandes empresas estadunidenses, de juízes politizados e, especialmente, de uma mídia corporativa que se pauta pelos interesses de Washington.
Figuras como Bolsonaro, Milei e a própria Corina podem ser incluídos na categoria dos políticos cooptados ou alguém considera normal um presidente brasileiro beijar a bandeira dos Estados Unidos e jurar amor ao ocupante da Casa Branca, como fez Bolsonaro com Trump?
Da mesma forma, não é normal que um presidente da Argentina aceite que forças policiais dos Estados Unidos façam a patrulha do rio da Prata ou a dita oposicionista Corina defender sanções que tiveram como resultado a morte de milhares de venezuelanos, com o único objetivo de desgastar o governo Maduro.
Já as ONGs bancadas por empresas e instituições do Tio Sam estão em ação em toda a América Latina, financiando desde “inocentes” pregadores na Amazônia, que cristianizam índios e “defendem” o meio ambiente, até entidades que apoiam o identitarismo, inclusive em conceituadas universidades públicas da região.
Quem quiser se aprofundar sobre o assunto basta pesquisar sobre a atuação da Open Society, do bilionário George Soros, ou sobre o papel da Fundação Ford nos países abaixo do rio Grande.
Como a própria Casa Branca, essas ONGs adoram levar “democracia” à América Latina. Democracia que, na realidade, é sinônimo de impor conceitos, valores e, sobretudo, naturalizar a rapina das matérias-primas e riquezas da região.
Com que direito, por exemplo, a Casa Branca fala em democracia, quando em 2000, George W. Bush roubou a eleição vencida por Al Gore?
Com que direito um sistema plutocrático, controlado por 181 famílias, como o consagrado intelectual estadunidense Noam Chomsky define o poder em seu país, quer ensinar democracia para os outros?
O Haiti está apodrecendo nas barbas do Tio Sam, mas como lá não existe petróleo, ouro ou outra riqueza alvo de cobiça, a Casa Branca não se preocupa. A preocupação, de democratas e republicanos, se dirige, no entanto, para a Venezuela.
Quem tem boa memória deve se lembrar de que a década iniciada em 2000 foi marcada pela chamada “onda vermelha” na América Latina, quando países tão diversos quanto Honduras, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Argentina e Brasil elegeram governantes progressistas. A eleição de Chávez, em 1998, foi precursora.
Quase todos esses governantes conseguiram eleger seus sucessores, mas, exatamente por isso, a democracia nestes países passou a ser alvo de ataques.
O que aconteceu com a presidenta Dilma Rousseff, no Brasil, é o exemplo mais cabal e sintetiza como a guerra híbrida atua.
Sem crime de responsabilidade, Dilma foi alvo de um golpe travestido em impeachment, depois que a oposição questionou a sua vitória e a mídia corporativa destruiu a imagem dela e do seu governo que, diga-se, ia muito bem.
Essa mesma mídia foi essencial para que Lula fosse preso, sem qualquer prova de corrupção, e assim ficasse impedido de disputar a eleição vencida por Bolsonaro, em 2018.
Do nada, as ruas das principais capitais brasileira encheram-se de “manifestantes” contra o governo petista. Manifestantes saudados pela mídia e até por setores da esquerda que, no final das contas, se mostraram a serviço de entidades financiadas do exterior e pela direita local. O Movimento Brasil Livre (MBL) que o diga.
O que se passa na Venezuela nada mais é do que um repeteco dessas ações, com a diferença de que lá as forças armadas são leais ao governo e existe uma enorme organização popular. Razão pela qual os golpes não deram certo.
A mídia corporativa, claro, não mostra nada disso.
Não mostra, porque ela é parte do processo de guerra híbrida tanto lá quanto aqui. É parte do processo em marcha para manter e aprofundar a recolonizar da América Latina.
Da “onda vermelha” dos anos 2000 resta pouco. Além da Venezuela e de Cuba que, há décadas, resistem ao imperialismo dos Estados Unidos, às suas sanções e tentativas de golpes, praticamente apenas o Brasil, a Bolívia, o México e a Colômbia têm nos dias atuais governos comprometidos com o interesse da maioria de suas populações e que não se pautam pela cartilha neoliberal.
Não por acaso foram três desses governos os que se propuseram a mediar a crise instalada pelos Estados Unidos na Venezuela.
Se não fosse a permanente atuação dos Estados Unidos para tutelar a vida dos países latino-americanos, era para esta eleição ter transcorrido dentro da normalidade.
O que se vê, no entanto, é uma Venezuela mergulhada em tentativas de golpe, com milicianos e narcotraficantes recebendo entre US$ 150 e 200 por dia para tocar o terror, queimando escolas, postos de saúde, ferindo e matando quem apoia o governo.
As mortes confirmadas ultrapassam duas dezenas de pessoas.
Autoridades estadunidenses já sinalizam que o resultado das urnas não será reconhecido, o mesmo acontecendo com governos de extrema-direita latino-americanos e europeus.
Alguém pode considerar novidade os Estados Unidos não reconhecerem a vitória do chavismo? A eleição de Maduro, em 2016, também não foi reconhecida pela Casa Branca.
Alguém pode considerar novidade a Inglaterra não reconhecer a vitória de Maduro? Para quem não tem boa memória, lembro que a Inglaterra é o país cujo governo roubou as 31 toneladas de ouro do fundo soberano da Venezuela, que se encontravam depositadas em estabelecimento bancário daquele país.
A obviedade na ação dos governos de extrema-direita da América Latina é tamanha, que nem merece discussão.
Quais são as credenciais democráticas de figuras como Dina Boluarte ou Daniel Noboa, quando oprimem e implantam o terror em seus próprios países?
Neste quadro tão complexo, o papel dos governantes do México, da Colômbia e do Brasil se torna crucial.
Diferentemente do que pretendia a extrema-direita ou mesmo setores da esquerda, a participação desses países como mediadores se mostra essencial num momento em que a guerra híbrida tenta sufocar a democracia na Venezuela.
Daí a enorme relevância do Brasil e do presidente Lula, pelo que representa tanto externa quanto internamente.
Maior país da América Latina e um dos maiores do mundo, o Brasil de Lula é ouvido e respeitado. Motivo pelo qual Lula, quando pede prudência e paciência, tem sido tão atacado.
É que os ataques a Maduro, independente do relacionamento que ele e Lula possuam, já tem e terá consequências.
Não por acaso a mídia corporativa brasileira estampa em capas de suas revistas semanais que a eleição na Venezuela é “a maior fraude da história” ao mesmo tempo em que tenta empoderar o bolsonarismo para pressionar e emparedar Lula.
Alguma novidade em relação ao que foi feito, em anos recentes, por esta mídia, contra Lula e o PT?
Em outras palavras, independente de qual seja a posição do governo brasileiro – pessoalmente acredito que será a de reconhecer a legitimidade do resultado do pleito venezuelano – a oposição comandada por Washington vai tentar utilizá-la para atacar Lula.
Ele sabe disso, mas não há como escapar. Se não fizer o que a Constituição brasileira determina e ela é clara quanto à “não ingerência”, estará assinando o atestado de morte para a nossa democracia, especialmente para daqui a dois anos, quando haverá eleição presidencial.
Se contestar o resultado, como quer o Tio Sam, estará atestando a morte da nossa soberania, pouco importando que se continue a falar em política externa “ativa e altiva”.
A profusão de manchetes, de notícias no rádio e na TV, de postagens nas redes sociais contra o resultado das eleições na Venezuela deve ser vista dentro deste contexto.
Os verdadeiros democratas latino-americanos sabem disso, mas a turma da guerra híbrida quer convencer aos desinformados ou desavisados do contrário.
A sorte é que a América Latina de 2024 não é mais aquela terra cujo dono era o Tio Sam. Ela diversificou seus parceiros econômicos e suas alianças estratégicas, dentre os quais a China se destaca como principal.
Se ao Tio Sam interessa a divisão para continuar imperando na região, esse não parece ser o propósito da China, que já reconheceu e felicitou Maduro pela vitória.
Daí, as ameaças que os Estados Unidos, a extrema-direita europeia e a latino-americana fazem à Venezuela destinarem-se ao fracasso.
Com o apoio de aliados como China, Rússia e Irã, dificilmente um golpe contra Maduro prosperará.
O que não significa que o governo chavista deixe de enfrentar dificuldades e instabilidades.
Afinal, na Venezuela se joga o futuro de uma América Latina soberana.
Com informações do Viomundo
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