Arte: Latuff (@LatuffCartoons)
A Polícia Militar e os pretos
As mortes por “intervenção” policial dispararam 26% com Tarcísio. Já a Bahia de Rui Costa é o estado que mais mata pretos do Brasil
Matar trabalhadores pobres e pretos é o grande consenso republicano.
Enquanto Tarcísio de Freitas recompõe a base social da extrema direita em torno de sua figura após abalos nos primeiros meses, a polícia baiana continua com as suas chacinas sem holofotes.
Se Tarcísio de Freitas assume com orgulho uma estética fascista por meio de uma enorme operação no Guarujá, delineando abertamente uma política de terrorismo de Estado, Jerônimo Rodrigues continua, de forma abnegada, as suas chacinas Pôncio Pilatos, lavando as mãos nas águas da praia do Farol da Barra, sob os olhos lacrimosos da elite branca soteropolitana.
Persegue o legado de Rui Costa, o incógnito.
Assim como a SS, que matava 10 pessoas comuns para cada soldado morto, Tarcísio de Freitas ordena matar quantidades similares de trabalhadores para o soldado morto, sem esconder de ninguém. Não é fortuito.
Grupos neonazistas acompanham com apreço – compreendem a simbologia e o significado da ação, mais ou menos como Jair Bolsonaro em lives bebendo leite. Aqueles que ignoram, regozijam-se com a guerra total contra os “manos”, ou pretos.
Mas e a Bahia? Logo o estado com mais negros da federação? Sem copo de leite, a congregação da elite soteropolitana não deixa de ter o seu brinde com vinhos brancos.
Mas e as investigações? O suposto suspeito de matar o soldado da Rota foi preso em São Paulo, a mais de 100 quilômetros de distância de Guarujá, sob investigação da Polícia Civil. Portanto, a Operação nazifascista nada teve a ver com qualquer investigação.
Foi explicitamente uma operação militar de execução de pessoas comuns alheia a qualquer processo investigatório, uma vez que a tal “investigação da Rota” levou os corpos ao IML sem identificação.
Trabalhadores como o vendedor Filipe do Nascimento morreu por ter ido ao supermercado.[i] Um morador de rua foi furado com fuzil.[ii] Chegou e saiu do IML como indigente.
Se possui tal classificação, qual seria a sua relação com os assassinos do policial da Rota? Nenhuma!
E a Bahia? Registrou 19 mortes em quatro dias, assim como São Paulo. Assim como a Rota, a polícia baiana alegou “troca de tiros” em todos os casos.
A eficiência da polícia brasileira em situação de “troca de tiros” causa inveja nos grupos especiais dos exércitos dos EUA, Rússia e OTAN.
Óbvio, não é objetivo cair na patacoada dos podcasts de milicos, nos quais vociferam: “então você está querendo que o policial morra?!”. Não.
Mas é estranho que apenas as polícias brasileiras consigam chegar a uma taxa de 100% e o exército norte-americano não consiga tal “feito”. Tem senador que fez curso na SWAT, mas talvez a SWAT e os SEALS devessem fazer curso nas polícias brasileiras.
A imprensa finge que está tudo certo, com a criação de termos grotescos, como “suposto inocente”.[iv]
Lógico, há os abnegados usados pelos grandes jornais para lufar ventos de pluralismo, como se chacinas fossem objetos para tal – no Brasil, são!
O judiciário não finge, mas participa das Operações Gestapo, como ocorria na Alemanha na década de 1930, sobretudo depois de 1937, sob novo consenso jurídico, mais ou menos como a tentativa de Sérgio Moro quanto ao excludente de ilicitude, já pertencente à prática do processo penal brasileiro. São juízes que moram em Higienópolis e no Farol da Barra.
O padrão de matar a esmo trabalhadores para cada policial morto em uma guerra que o PCC só ganhou desde o começo do século, tornando-se o principal cartel da América Latina e um dos maiores do mundo, ganhou agora contornos de institucionalidade.
A troca de 10 por 1 foi abertamente defendida pelo governador, pois o deixou “extremamente satisfeito”.
As mortes por “intervenção” policial, em que policiais alegam que houve troca de tiros, nunca provada, sequer investigada, dispararam 26% com Tarcísio. A câmara no uniforme na prática já foi abandonada.
Parece óbvio que o miliciano nazifascista usa as chacinas como forma de manter a extrema direita ativa. Portanto, mata com cálculo político, como qualquer nazista. Não sente remorso. Pelo contrário. Sente prazer, como ficou patente em sua entrevista.
Jair Bolsonaro está sendo instado a defender a chacina, o que demonstra que a extrema direita disputará a carioquização da polícia paulista, acompanhada, diga-se de passagem, pela polícia baiana.
E a Bahia? Bahia é o estado que mais mata pretos do Brasil. 100% dos mortos pela polícia em Salvador são pretos.[v] Em todo o estado, o índice é de 98%.[vi]
É o único estado que possui programa de reconhecimento facial em 80 cidades, mesmo sendo consenso científico que esse método não funciona com negros, ou melhor, incrimina mais negros inocentes do que brancos.
Rui Costa é o fascista incógnito da esquerda. Aquele bode em cima do telhado que atrai atenção de todos. Uns com receio que o bode caia, outros pela graça da situação, todos se perguntando como foi para lá.
Rui Costa pertence a uma esquerda que utiliza a segurança pública como moeda de negociação e governabilidade com a direita local, entregando a segurança pública para fascistas e jogando os dados para a torcida.
Não é que a esquerda tradicional não tenha debate sobre segurança pública. Tem! Só que eleitoralmente não serve. E se fascistas matarão trabalhadores pretos em nome da governabilidade, que assim o seja. Governabilidade e troca de votos são a mesma coisa, pois se assentam em mortos.
Quase todos os retrocessos nessa área na última década têm digital da esquerda, vide Haiti e Rio de Janeiro, responsáveis respectivamente pela articulação dos generais que habitaram o governo Jair Bolsonaro e pela ocupação midiática do Alemão contra o Comando Vermelho, abrindo espaço para as milícias.
Tanto a invasão do Haiti quanto as ocupações ufanistas dos morros cariocas, objetos da especulação imobiliária antes da Copa do Mundo e das Olimpíadas, contribuíram para o bolsonarismo.
No Haiti, denúncias de estupros e chacinas fizeram a ONU exigir a saída do general Augusto Heleno.[vii] Empoderaram os generais e ajudaram no alargamento territorial dos negócios das milícias (grupos paramilitares de direita).[viii]
Não se pode esquecer a Lei de Drogas, usada por juízes e promotores para prenderem pretos, a Lei de Terrorismo, fetiche do governo Jair Bolsonaro para criminalizar a própria esquerda, e a GLO, utilizada por Michel Temer em sua malfada tentativa de se viabilizar eleitoralmente.
Marielle e Anderson foram mortos quando Rio de Janeiro estava sob intervenção federal liderada pelo general Braga Neto, que viraria ministro de Jair Bolsonaro.
Rui Costa elegeu-se com a promessa de guerra total contra as drogas e os crimes de propriedade, e cumpriu. O único bairro que apresentou melhora significativa nos dados foi… Farol da Barra, o bairro rico e branco da cidade. Para tanto, matou pretos.
A melhora passou pela introdução do reconhecimento facial, comprovadamente ineficaz em pretos.
Salvador, sem dúvida, é um grande laboratório de um projeto de reconhecimento facial, cujo centro a ser protegido são os bairros objetos da especulação imobiliária.[ix]
No pódio de matar pretos, Bahia é seguido por Ceará e Pernambuco, comandados até então por Camilo Santana (PT) e Paulo Câmara (PSB), respectivamente. Portanto, assim como a direita, a esquerda comanda polícias que matam tantos ou mais pretos.
Se tivéssemos uma esquerda decente, isso seria um ponto de inflexão. Leonel Brizola sofreu ao defender que os arrastões eram isolados, pois foi ele que ligou a zona norte com a zona sul com a primeira linha de ônibus do Túnel Rebouças, atraindo críticas da imprensa, como O Globo, que lutava contra o tal “caudilho” em virtude dos direitos relativos ao carnaval.[x]
O famoso vídeo de brancos da zona sul chamando os pretos da zona norte de imundos, afirmando que “eles não são como nós”, deve ser compreendido nesse contexto.[xi]
No Profissão Repórter de 21 de setembro de 2021, jornalistas percorreram três estados para denunciar os assassinatos de jovens por policiais: Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
A Bahia chamou a atenção como se tivesse melancia na cabeça. É o estado que matou, em 2020, em todas as “intervenções” policiais, 100% de jovens pretos.
O repórter Pedro Borges indagou ao então secretário de segurança pública, Ricardo Mandarino, um branco, o motivo.
O secretário disse que até 2020 a secretaria possuía uma “política do confronto”, e que, em 2021, teria mudado, expressando-se na redução de 30% nos assassinatos de policiais.
Os dados de 2022 comprovam o contrário. Há um complô da Segurança Pública para livrar todo e qualquer policial que participou de chacinas.
Porém, admitindo-se que estivesse correto, houve uma confissão: “tínhamos uma política de confronto”.
Os assassinatos mostrados na reportagem não ocorreram por meio de troca de tiros, e uma mulher que teve um parente executado sofreu um surto traumático registrado pela reportagem, precisando ser controlada com “um copo d’água”.
O homem responsável por essa política é Rui Costa. Cumpre lembrar também que a polícia da Bahia foi a responsável pela execução de Adriano de Nóbrega em uma situação até hoje não explicada, uma evidente queima de arquivo.
O então governador, atual ministro da Casa Civil, estranhamente mal inquirido sobre o caso, escolheu na eleição de 2020 uma candidata militar para a disputa da eleição à prefeitura de Salvador, a despeito da decisão da militância do partido. Perdeu.
O PT tem sérios problemas eleitorais em Salvador, e sua política de segurança é uma das responsáveis.
Traduzindo a entrevista do secretário, a posição vacilante do governador diante da execução de Adriano de Nóbrega e a sua escolha militarizada pela candidata militar do PT para a disputa da eleição de Salvador evidencia uma coerência impressionante.
O governador surfou no bolsonarismo e no punitivismo. Autorizou matar à vontade e fingiu uma mudança diante da crise do bolsonarismo.
Na chacina da Cabula, em 2015, na qual 10 pessoas foram executadas por sua polícia, Rui disse que os policiais se portaram “como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, para fazer o gol”.
Qual seria a diferença do “extremamente satisfeito” de Tarcísio de Freitas? À época, a PGR pediu a federalização do caso por evidente falta de isenção do governador. O STJ negou.
A Operação Faroeste descortinou, em seguida, um esquema do secretário de segurança, Maurício Barbosa, com a juíza que inocentou os assassinos de Rui.
Como descreveu Jailton Andrade, “segundo delação da desembargadora Sandra Inês Rusciolelli, o Secretário de Segurança Pública teria sido convidado pelo presidente do TJ-BA para integrar a quadrilha. O governador exonerou o secretário somente depois que o STJ o afastou do cargo. Depois, guardou a caneta e a língua”.[xii]
A polícia baiana questionou os novos dados de mortalidade policial, dizendo que possui métodos próprios, como a de não contabilizar criminosos mortos pela polícia – mas quem diz que são criminosos? A própria polícia?
E mesmo que fossem, o método (e o argumento) foi utilizado com sucesso político pela Gestapo, e agora, ao lado do atual governador Jerônimo, por Tarcísio. Talvez semelhante ao método de um nazista ou ao de um neonazista negacionista que brada que o Holocausto não existiu, o qual seria fruto de um complô judaico-marxista.
Os métodos baianos são nazistas,[xiii] como mostrou Rui Costa com um silêncio naturalizante na chacina da Gamboa.
Os métodos de todos os governadores, em graus distintos, são nazistas, porque naturalizam a execução de pretos, assim como se naturalizava a de judeus na década de 1930 na Alemanha.
E explicitar isso ajuda-nos a compreender que a Política de Extermínio de trabalhadores pobres e pretos é uma Política de Estado. E é essa Política de Estado que autoriza e dá legitimidade social e política a Tarcísio, a ponto de construir uma operação e explicitamente reclamar por uma estética fascista, inclusive na entrevista oficial.
O caso das escolas cívico-militares demonstra cabalmente que a militarização é uma política de Estado, cujo último governador a lutar abertamente contra foi Leonel Brizola.
Rui Costa, de forma pioneira, instalou escolas cívico-militares para pretos enquanto a sua polícia matava pretos. Em 2020, o estado já possuía mais de 100 escolas, antes de qualquer implantação do governo federal, por iniciativa do próprio governador.
Casos de racismo explodiram nas escolas, com proibição de cabelos, roupas e repressão a comportamentos considerados “populares” e “negros” demais aos policiais “disciplinadores”.
Nos TikTok, é comum perfis que compartilham, com adoração, a atuação dos policiais militares nos carnavais baianos, espancando aleatoriamente pessoas com cassetetes na cabeça. Tão aleatório que um policial civil foi espancado por policiais.[xiv] Seu crime: dreads.
Aliás, um jovem foi espancado aos olhos (e celulares) de todos por um policial, que gritava que odiava o seu cabelo.[xv]
Uma jovem foi proibida de entrar na escola cívico-militar porque não fez coque, um cabelo de… branca, ou de alguém que se propõe a fazer algum alisamento.[xvi]
Qualquer processo de reconhecimento e punição a esses policiais é desconhecido pelo público. A julgar pelo padrão Rui Costa, agora reproduzido por Jerônimo Rodrigues,[xvii] devem ter sido promovidos.
O Rui Costa é aquele bode no telhado. Aquela ovelha branca que ninguém fala… É um padrão desconcertante para Lula, que preferiu ficar em silêncio após a publicação dos dados da Bahia.
Dizem que o bolsonarismo ainda resiste no Banco Central. Verdade. Dizem que está se recompondo com Tarcísio de Freitas. Verdade.
Mas agora a extrema direita tem dados objetivos e translúcidos para jogar na cara da esquerda que as suas polícias são tão ou mais violentas do que as polícias comandadas por governadores de direita e extrema direita. É o grande consenso republicano da Nação.
*Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo (Alameda).
Notas
[i] Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/08/02/mulher-diz-que-pm-matou-vendedor-no-guaruja-ele-saiu-para-ir-ao-mercado.htm.
[ii] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/pm-matou-possivel-morador-de-rua-com-tiros-de-fuzil-e-pistola-em-guaruja.shtml#:
[iii] Disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/08/01/bahia-registra-19-mortes-apos-confrontos-entre-policiais-militares-e-suspeitos-em-quatro-dias.ghtml.
[iv] “O suspeito gravou um vídeo antes de se entregar. Nele, pediu para que a polícia parasse com a “matança” de supostos inocentes nas operações após a morte do soldado Reis”. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/08/02/suspeito-matar-pm-guaruja-confundiu-viatura-temia-pcc-diz-investigacao.htm.
[v] Disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/12/14/bahia-e-o-estado-mais-letal-do-nordeste-e-100percent-dos-mortos-pela-policia-em-salvados-sao-negros-aponta-pesquisa.ghtml.
[vi] Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2022/11/17/a-cada-100-mortos-pela-policia-da-bahia-98-sao-negros-afirma-relatorio.
[xvii] Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/07/21/governo-do-pt-da-ba-copia-bolsonarismo-em-nota-sobre-violencia-policial.htm.
Por Leonardo Sacramento*, em A Terra é Redonda
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