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Momentos depois dos boletins dos secretários de saúde do Brasil contabilizarem 3251 mortos por covid-19 , o registo mais alto de sempre, foi emitida nas televisões, na noite de terça-feira (23 de março), uma comunicação de Jair Bolsonaro ao país sobre o flagelo contendo nove mentiras, omissões, imprecisões, exageros ou promessas impossíveis de cumprir, de acordo com os sites de verificação locais.

No total, morreram já cerca de 300 mil brasileiros em decorrência do novo coronavírus, um terço dos quais de janeiro para cá. O descontrolo no número de casos e mortes e o colapso iminente do sistema de saúde, colocam o Brasil no topo das preocupações globais da Organização Mundial de Saúde.

Durante o discurso presidencial de cerca de três minutos, centenas de cidades do Brasil registaram “panelaços”, o protesto ruidoso – bater panelas das varandas das casas – contra políticos comum na América do Sul. Antes da queda de Dilma Rousseff, presidente de 2011 a 2016, os “panelaços’ a cada comunicação dela prenunciaram a sua queda.

PRIMEIRA

O presidente do Brasil começou por dizer que “em nenhum momento o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o ???????coronavírus quanto para combater o caos na economia, que poderia gerar desemprego e fome”.

No entanto, ao longo da pandemia, Bolsonaro minimizou o impacto do que chamou de “gripezinha”, desaconselhou o uso de máscaras, opôs-se a medidas de isolamento social propostas por governos estaduais e prefeituras municipais, recusou-se a comprar vacinas e desdenhou da sua utilidade, fez campanha pelo uso de remédios ineficazes, provocou ajuntamentos e ignorou ou debochou dos compatriotas infetados.

Para combater os efeitos da doença na economia propôs o pagamento aos mais carentes e afetados de 200 reais [cerca de 30 euros], um valor triplicado mais tarde por decisão do Congresso Nacional em 2020. Em 2021, o valor, ainda em discussão, será menor.

SEGUNDA

Bolsonaro sublinhou, por outro lado, que o Brasil é “o quinto país que mais vacinou no mundo”.

Dados da plataforma Our World in Data, ligada à Universidade de Oxford, confirmam esse número em valores absolutos – porém, contabilizado o número de doses aplicadas por mil habitantes o Brasil aparece na 73ª posição, atrás do líder da tabela Israel e mesmo da vizinha Argentina.

Segundo o consórcio dos principais veículos de imprensa que coleta informações nas secretarias estaduais de saúde, só 2,69% dos brasileiros já receberam as duas doses da vacina.

TERCEIRA

Disse ainda o presidente da República que “em julho de 2020” foi assinado “um acordo com a Universidade Oxford para produção na Fiocruz [laboratório estatal] de 100 milhões de doses da vacina AstraZeneca”.

A medida, porém, foi considerada errada por especialistas: afinal, Bolsonaro apostou apenas numa vacina recusando, por exemplo, a da Pfizer. E horas antes do discurso, o Ministério da Saúde reduzia pela quinta vez a expectativa de entrega de vacinas AstraZeneca de 30 para 18 milhões de doses.

QUARTA

“Em dezembro liberamos mais 20 mil milhões de reais, o que possibilitou a aquisição da Coronavac, através do acordo com o Instituto Butantan [laboratório do estado de São Paulo]”, disse ainda Bolsonaro.

O presidente não mente mas esconde que só comprou a Coronavac, originária da China, com meses de atraso e depois de ter ofendido o país produtor apenas porque o rival político João Doria, governador de São Paulo, tinha fechado acordo com o laboratório que a produz. “Não compraremos a vacina chinesa do Doria”, disse.

Chegou até a celebrar a morte de um voluntário da vacina. “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”, escreveu o presidente. “O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, concluíram as redes sociais em seu nome.

Hoje, a maioria dos brasileiros vacinada foi-o graças à Coronavac.

QUINTA

Bolsonaro mentiu, aliás, quando afirmou que sempre disse “que compraríamos qualquer vacina desde que aprovada pela [agência de vigilância sanitária] Anvisa”

O presidente disse textualmente: “Da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela [vacina] transmita segurança suficiente para a população pela sua origem (…) Acredito que teremos a vacina de outros países, até mesmo a nossa, que vai transmitir confiança para a população. A da China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido lá”.

O seu terceiro ministro da saúde, Eduardo Pazuello, chegou a tentar comprar Coronavac à revelia mas acabou desautorizado pelo presidente.

SEXTA

?”Intercedi pessoalmente com a fabricante Pfizer para a compra de mais doses”, disse também Bolsonaro.

O encontro com o CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, no entanto, foi no início de março deste ano já os números de casos apresentavam descontrolo e o sistema de saúde do Brasil estava à beira do colapso. Antes, o governo ignorou ou rejeitou propostas da farmacêutica para fornecimento de milhões de doses, com possibilidade de aplicação já a partir de dezembro de 2020.

Bolsonaro sempre sublinhou a existência de efeitos colaterais relacionados à vacina: “Se tomar e virar um jacaré é problema seu. Se virar um super-homem, se nascer barba em mulher ou homem falar fino, ela [a Pfizer] não tem nada com isso”, afirmou Bolsonaro, em 17 de dezembro.

SÉTIMA

As condolências enviadas às famílias dos 300 mil brasileiros mortos – “solidarizo-me com todos aqueles que tiveram perdas em suas famílias, que Deus conforte seus corações” – se não podem ser consideradas mentira soam pelo menos estranhas depois de quase um ano com afirmações em sentido contrário.

Bolsonaro já qualificou os receios da populacão em relação ao coronavírus de “histeria”, de “fantasia” e de “frescura” e “mimimi”, duas expressões traduzíveis por “pieguice”. Clamou para que os brasileiros deixassem de ser “maricas” e disse não ser “coveiro”, quando confrontado com o número crescente de mortes. “Vão ficar chorando até quando?”, perguntou no dia 4 de março, antes de duvidar de que as mortes contabilizadas pelos governos estaduais sejam mesmo por covid-19.

OITAVA

“Logo seremos autossuficientes na imunização”., continuou Bolsonaro.

É certo que “logo” pode ter interpretações elásticas mas tendo em conta que segundo os mais otimistas o Brasil terá produzido 200 milhões de vacinas até agosto, ficam a faltar ainda 330 milhões de doses, situação que deve adiar a “autossuficiência” para o ano de 2022 ou mais tarde.

NONA

Ainda na mesma toada irrealista, prometeu aos compatriotas que “muito em breve” todos retomarão “a vida normal”.

A lenta velocidade na vacinação e a possibilidade do surgimento de novas variantes, mais transmissíveis e agressivas, no entanto, devem fazer com que a imunidade de rebanho não seja atingida ainda neste ano, concordam os pesquisadores.

Os mesmos pesquisadores sublinham também que mesmo com avanço na vacinação, devem ser mantidas regras de distanciamento social e uso de máscara, medidas que têm sido atacadas por Bolsonaro desde o início da pandemia e até à semana passada. Na sexta-feira, moveu ação no Supremo Tribunal Federal contra o decreto dos governos do Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul que restringiam a circulação de pessoas. O pedido foi negado pelo juiz Marco Aurélio Mello.

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