Cadê o porteiro?
Nenhuma pergunta para esclarecer o episódio que pode ser caracterizado como obstrução de justiça, no caso dos registros de áudio da portaria onde Jair Bolsonaro tem uma casa.
Assim foi a entrevista realizada pelo Domingo Espetacular, da TV Record.
De concreto, o anúncio de Bolsonaro de que está quase fora do PSL — 80% de chance de sair do partido, 90% de chance de criar uma nova legenda, para disputar a eleição municipal em 2020.
Também de concreto a informação de que a poluição do óleo no litoral brasileiro pode se tornar um problema mais grave.
O repórter não perguntou por que o governo federal demorou a agir, nem se interessou em saber por que ele considera o vazamento de óleo criminoso.
Pelo menos Bolsonaro já não responsabiliza a Venezuela. Considera que a responsabilidade pelo vazamento é mesmo do navio grego.
Sobre a investigação em torno do assassinato de Marielle Franco, Bolsonaro repetiu o que disse em outras entrevistas.
Considera que tudo pode ser armação do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.
Se era armação, por que o governador do Rio o avisou 21 dias antes do Jornal Nacional publicar a reportagem sobre o depoimento do porteiro.
Parece muito mais uma camaradagem, do tipo: se prepara por que o porteiro mencionou você e o caso está indo para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Foi um aviso com tempo suficiente para que, em três semanas, por exemplo, registros da portaria fossem alterados. Este é uma hipótese plausível.
Bolsonaro também mudou a versão que ele havia dado sobre o acesso que teve aos registros de áudio da portaria do condomínio.
Ontem, ele havia dito que pegara os áudios.
“Pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica que é guardada há mais de ano. A voz não é a minha, não é do ‘seu Jair’. Agora, o que que eu desconfio? Que o porteiro leu sem assinar, uma pessoa humilde, ou induziram ele a assinar aquilo. Agora quem está por trás disso? Governador Wilson Witzel”.
Leu sem assinar? Na verdade, o que ele quis dizer é assinou sem ler. Mas, quando nervos estão à flor da pele, confusões desse tipo acontecem.
Bolsonaro também afirmou que o objetivo era evitar adulteração. “Nós pegamos — antes que fosse adulterada ou alguém tentasse ali adulterar —, pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica”, afirmou.
Agora, o verbo mudou. Já não é mais pegar, mas acessar. Um acesso, segundo sua nova versão, que ocorreu posteriormente à entrega de uma cópia dos áudios para a Polícia Civil e o Ministério Público.
Ora, se isso é verdade, a cópia dos áudios já tinha sido entregue e, portanto, se houve adulteração, ela ocorreu antes.
Na Record, Bolsonaro recordou a ida do filho Carlos à administração do condomínio para gravar um vídeo em que mostra o áudio, com a voz de Ronnie Lessa autorizando a entrada de Elcio de Queiroz ao condomínio.
Esse vídeo foi gravado depois que a reportagem do Jornal Nacional tinha ido ao ar. De novo: se houve adulteração, ela já tinha ocorrido.
Por enquanto, não há prova que isente Bolsonaro. Pelo contrário: não houve perícia no gravador das conversas telefônicas da portaria.
O Ministério Público do Rio de Janeiro, através da equipe da qual fazia parte aquela promotora bolsonarista, realizou um confronto de vozes, entre o registro entregue pelo condomínio e a gravação do depoimento de Ronnie Lessa.
A conclusão é que era a mesma voz.
É um trabalho que não serve para desqualificar o depoimento do porteiro nem para anular o registro — feito à mão no livro de visitantes — de que um dos assassinos de Marielle entrou no condomínio para ir à casa de Bolsonaro.
Continua sem explicação por que o porteiro escreveu no livro de visitantes que o destino do assassino era a casa 58, a de Bolsonaro.
O repórter da Record poderia ter feito essa pergunta. Mas ali, ao que parece, o objetivo era outro. Bolsonaro usou a entrevista para, mais uma vez, atacar.
Atacar o governador, numa tentativa de politizar um caso, que é policial.
E atacar a Globo, que tem uma imagem desgastada junto à maior parte dos eleitores.
Acusou a Globo de fazer um jornalismo sujo, e o repórter da Record o ajudou a contar que não foi procurado pela repórter da Globo que cobria sua viagem à Arábia Saudita.
Nenhuma novidade.
O que mais importa agora é o depoimento do porteiro, que continua sendo um personagem sem rosto e sem nome.
E é muito importante que ele fale antes que caia nas mãos de Sergio Moro, que acertou com o procurador-geral da república, Augusto Aras, a abertura de um inquérito.
Mas o porteiro é uma fonte que nem Globo nem Record procuraram.