Quem visse na semana passada um grupo de indígenas dividindo peixes assados em folhas de bananeira numa aldeia à beira do rio Iriri, no sul do Pará, não poderia imaginar que, há algumas décadas, vários dos povos ali presentes viviam em guerra.
As rixas do passado – que quase levaram um desses grupos ao extermínio – foram abandonadas em nome de um objetivo maior: lutar contra o que eles consideram ameaças do governo Jair Bolsonaro à Amazônia.
A lista de preocupações inclui planos do governo para autorizar o arrendamento e a mineração em terras indígenas e atitudes que estariam incentivando invasões por garimpeiros e madeireiros em seus territórios, além da contaminação de rios locais por agrotóxicos.
Espécie de Assembleia Geral da ONU de povos da floresta xinguanos, o encontro que ocorreu na última semana na aldeia Kubenkokre, da Terra Indígena Menkragnoti, dos kayapós, reuniu representantes de 14 etnias indígenas e de quatro reservas ribeirinhas da bacia do Xingu.
A região, que ocupa partes do Pará e de Mato Grosso, tem área equivalente à do Rio Grande do Sul e é um dos últimos trechos preservados da Amazônia em sua porção oriental. Dados do boletim Sirad-X, porém, indicam que a região perdeu 68,9 mil hectares de floresta – equivalente à área de Salvador – entre janeiro e junho deste ano. O boletim é produzido pela Rede Xingu+, que organizou a assembleia e agrega 24 organizações ambientalistas e indígenas da região.
“Hoje nós temos um só inimigo, que é o governo do Brasil, o presidente do Brasil, e as invasões de não indígenas”, diz à BBC News Brasil Mudjire Kayapó, um dos líderes presentes. “Temos brigas internas, mas, para lutar contra este governo, a gente se junta”, ele afirma.
A organização do encontro envolveu uma logística complexa. Indígenas deixaram suas aldeias rumo às cidades mais próximas, onde foram recolhidos por ônibus fretados.
Único veículo jornalístico não indígena a cobrir o evento, a BBC News Brasil iniciou a jornada em Sinop (MT). De lá, foram cerca de sete horas de ônibus pela BR-163 e outras sete numa estrada de terra em mata fechada até a aldeia, que tem cerca de 500 moradores.
Já no interior da terra indígena, uma vara de porcos-do-mato cruzou a pista à frente do ônibus. Avisados, caçadores kayapós foram ao local na manhã seguinte. Voltaram com três porcos, que acabaram assados e servidos aos visitantes junto com carne de paca.
O cardápio também oferecia arroz e feijão, incluídos para atender paladares mais sensíveis, além de peixes pescados no Iriri servidos em folhas de bananeira.
Os debates ocorreram na casa dos homens, construção no centro da aldeia, cercada por casas dispostas em um grande círculo. Conhecidas pelas delicadas pinturas corporais, as mulheres da aldeia raramente apareciam no encontro e passavam os dias entre as roças e suas casas – detalhe que gerou uma saia-justa com uma visitante ribeirinha (leia mais abaixo).
Missão de paz
Povo indígena mais numeroso do Xingu, com cerca de 12 mil integrantes, os kayapós – que se autodenominam mebêngôkre – fizeram questão de sediar o evento, o primeiro encontro da Rede Xingu+, numa aldeia indígena (as três assembleias bienais anteriores foram em cidades).
Ao sediar a reunião, eles queriam selar de vez a paz com os vizinhos. “Não vamos repetir o passado, vamos ter união daqui para a frente”, discursou Kadkure Kayapó, um dos caciques da aldeia.
Um dos resultados do evento foi a criação de um conselho entre as organizações participantes para unificar demandas e agilizar sua articulação política. Os kayapós também buscavam fortalecer alianças com outros grupos num momento em que o próprio povo está dividido.
Em duas das quatro terras indígenas da etnia, alguns líderes têm permitido a ação de garimpeiros e madeireiros. A situação é mais grave na Terra Indígena Kayapó, onde os rios Fresco e Branco foram contaminados por mercúrio e desfigurados por balsas e retroescavadeiras usadas pelos garimpeiros.
Em julho, uma reportagem da BBC News Brasil mostrou em imagens de satélite o avanço do garimpo na região desde o início do ano.
Assédio de garimpeiros
Para Doto Takakire, um dos anfitriões do evento, a proposta do governo de liberar a mineração em terras indígenas tornou alguns líderes mais suscetíveis ao assédio de garimpeiros, que oferecem dinheiro em troca da permissão para atuar nos territórios.
“Depois que eles (líderes indígenas) pegam o dinheiro fácil, viciam e não querem mais trabalhar. É algo humano: acontece com indígenas e não indígenas”, afirma.
O garimpo é hoje proibido em terras indígenas. A liberação da atividade, tratada pelo governo Bolsonaro como prioritária, depende da aprovação de uma lei pelo Congresso.
Outra causa para o aumento do garimpo, segundo Takakire, foi a diminuição nas multas aplicadas pelo Ibama, órgão responsável por combater crimes ambientais em terras indígenas. Até o meio de agosto, o número de autuações do órgão caiu 30% em relação à média dos últimos três anos para o mesmo período.
Em entrevista à BBC, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que a redução no número de multas não indica um afrouxamento do combate a ilícitos. Segundo Salles, o Ibama tem buscado embasar mais suas autuações para que os infratores não consigam se livrar das cobranças, priorizando a qualidade e não a quantidade de multas.
Divisões causadas pelo garimpo
Líderes indígenas favoráveis ao garimpo não foram convidados para o encontro, decisão que foi questionada por alguns dos presentes.
“Aqui só temos parentes que lutamos pelo meio ambiente, pela terra, pela água, mas não tem nenhum parente que quer o agronegócio ou o garimpo nas aldeias. Vamos ficar só debatendo entre nós?”, questionou Oé Kayapó, representante da Associação Floresta Protegida (AFP).
Ela cobrou dos participantes convencer os ausentes a abandonar atividades destrutivas. “Vamos continuar brigando pela preservação do território enquanto outros brigam para ter garimpo e arrendamento de terra? Isso nos enfraquece, não dá para continuar assim”, afirma.
Organizadores disseram que os grupos divergentes não foram convidados para evitar conflitos.
Tramitam na Câmara dos Deputados propostas legislativas que permitiriam atividades agropecuárias de larga escala em terras indígenas.
Defensores das iniciativas, que também têm o respaldo do governo Bolsonaro, dizem que as medidas buscam garantir melhores condições de vida às comunidades.
Já indígenas contrários temem que as medidas abram o caminho para o arrendamento de suas terras para grandes produtores rurais, o que ameaçaria seus modos de vida.
Eles debateram no encontro alternativas econômicas ao agronegócio e à mineração. Foram compartilhadas experiências bem-sucedidas e dificuldades de iniciativas que buscam gerar renda sem derrubar a floresta, como o artesanato e o processamento de frutos nativos.
Tradução simultânea
O encontro, que durou três dias, reuniu etnias com vários idiomas distintos e teve duas línguas oficiais. Todas as falas em kayapó eram traduzidas para o português, e vice-versa.
Alguns visitantes compreendiam o kayapó por falarem idiomas do mesmo tronco linguístico, o macro-jê, enquanto os demais recorriam ao português, que a maioria dos grupos fala como segunda língua. Além dos múltiplos idiomas, ouviam-se os cantos de araras domesticadas, que vez ou outra pousavam sobre a casa dos homens.
O discurso que causou mais comoção foi feito por Bepto Xikrin, liderança da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará.
Ele contou que, desde o início do ano, cerca de 400 garimpeiros e madeireiros estavam atuando no território. Bepto disse que as comunidades estavam assustadas e não sabiam como agir. De pronto, dois caciques kayapós se levantaram e prometeram enviar guerreiros para expulsar os invasores, recebendo aplausos de todos.
Outro momento simbólico foi a apresentação de cantos e danças dos convidados, no último dia. Para a primeira exibição, os kayapós convocaram representantes do povo panará: justamente um dos grupos com que eles guerrearam mais intensamente no passado.
Com os corpos pintados de jenipapo, os quatro panarás entoaram um canto gutural, saltando conforme o ritmo. Aplausos calorosos dos kayapós sugeriam que as rivalidades entre os grupos podem ter ficado para trás.
‘Morreu todo mundo’
No relatório que embasou a demarcação da Terra Indígena Panará, a Funai diz que o primeiro embate entre os dois povos ocorreu em 1922, quando os kayapós atacaram uma aldeia panará. Os panarás contra-atacaram no ano seguinte, alimentando um ciclo de revides que se estenderia até 1968, quando um massacre alterou o equilíbrio de forças na região.
O antropólogo americano Stephan Schwartzman, que viveu entre os panarás, narrou o episódio num artigo de 1992. Ele diz que, antes do grande ataque de 1968, os kayapós já vinham usando armas de fogo obtidas dos brancos na guerra contra os panarás, que, ainda sem contato com o mundo exterior, respondiam com flechas.
Naquele ano, conta Schwartzman, os kayapós “fizeram questão de juntar o maior número possível de armas e munição, inclusive obtendo munição com o missionário que morava com eles na época”. Os kayapós subiram o rio Iriri até a aldeia Sonkanasan, dos panarás, incendiando todas as casas e matando 26 pessoas.
Uma sobrevivente descreveu a chacina ao antropólogo. “Morreu todo mundo, meu pai e tios… Mataram meu marido… Mataram meu irmão mais velho, Peyati, meu filho Yosuri, meu irmão Kyotiswa, mataram minha mãe… Mataram meu sobrinho Nasu, era menino, mataram Sotare, que era adulto, mataram Kyititu… e o velho Kosu, mataram… Os Txurracamãe (kayapós) massacraram esse pessoal, por isso estou com raiva.”
Os sobreviventes deixaram a aldeia e se embrenharam na mata. Anos depois, outra tragédia se abateu sobre o grupo quando o território panará foi cortado pela BR-163, uma das estradas com que a ditadura militar pretendia integrar a Amazônia ao resto do país.
Para tirá-los do caminho e evitar conflitos ainda mais graves, o governo enviara à região uma missão chefiada pelos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas, que já tinham contatado vários grupos indígenas Brasil afora.
Tentativas infrutíferas de contato duraram vários anos, até que, em 1972, enquanto os operários se aproximavam da aldeia panará, uma epidemia de gripe se espalhou pela comunidade. “Morreram tantas pessoas que os sobreviventes não foram suficientes ou não tinham força suficiente para enterrá-las, e os urubus comeram os mortos apodrecendo no chão”, narra Schwartzman.
Famintos e doentes, os cerca de 200 remanescentes foram levados para o Parque Indígena do Xingu, ao sul. Em 1997, os panarás conseguiram regressar a uma parte de seu território original às margens da BR-163. Desde então, com a demarcação da área, a população do grupo triplicou.
Aliança contra os brancos e Bolsonaro
Dois líderes panarás presentes disseram à BBC que os conflitos com os kayapós foram superados.
“Nós matamos os kayapó, os kayapó nos mataram, nós brigamos com os kayabi, mas não sabíamos ainda o que estava acontecendo sobre o branco, não sabíamos dessa ameaça ainda”, diz Sinku Panará em sua língua, traduzido por João Paulo Denófrio, doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Então esfriamos a cabeça, nos reconciliamos, voltamos a conversar uns com os outros e não vamos mais brigar. Porque existe um interesse comum para que lutemos juntos, para que os não indígenas não matem a todos nós”, ele afirma. Sinku diz que a vitória de Bolsonaro encorajou uma aproximação ainda maior entre grupos indígenas que eram inimigos.
“Os outros presidentes tinham uma preocupação um pouco maior com as nossas terras (…). Este que chegou agora (Bolsonaro), ele não está preocupado com isso, ele está preocupado em acabar com o que a gente tem e acabar com a gente. Por isso estou com o coração cheio, por isso estamos conversando uns com os outros.”
Sinku diz estar preocupado “com as árvores, com a água, com o peixe, com os não indígenas que querem entrar na nossa terra em busca dessas coisas”. “Não quero estragar a água com garimpo, com mineração, não quero matar os peixes. Por isso que vim aqui: para fazer esta fala.”
Vários outros líderes expressaram receios semelhantes. Grupos que habitam áreas no sul da bacia, em Mato Grosso, disseram temer a contaminação dos rios por agrotóxicos usados em fazendas vizinhas.
“A soja está muito em cima do nosso limite (territorial)”, diz Winti Khisetje, um dos líderes da Terra Indígena Wawi. Ele diz que têm aumentado os casos de gripe, febre e coceiras na comunidade, o que ele atribui a agrotóxicos aplicados na região.
Segundo a ONG Greenpeace, nos sete primeiros meses de 2019, o Ministério da Agricultura liberou 290 novos tipos de agrotóxico. É o número mais alto para este período do ano em pelo menos uma década.
O Ministério da Agricultura diz que a liberação de mais agrotóxicos não tem provocado aumento no consumo. “Com a liberação de mais moléculas, o produtor vem usando menos, porque está usando produtos melhores”, disse em julho a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.
Tema que dominou o noticiário nacional na semana do encontro, as queimadas na Amazônia não estiveram entre os assuntos principais do evento – em parte porque a maioria dos incêndios na região tem ocorrido fora de terras indígenas e reservas extrativistas. Nessas áreas, as matas estão mais preservadas e, portanto, menos sujeitas à expansão do fogo.
Indígenas e ribeirinhos
O encontro também serviu para aproximar os kayapós e os demais indígenas xinguanos de outra população com que se estranhavam no passado: os ribeirinhos.
Uma das representantes do grupo era a pescadora Rita Cavalcante da Silva, de 47 anos, que visitava uma terra indígena pela primeira vez.
“Eu imaginava, mas não tinha dimensão do que era realmente uma terra indígena. É muito bonito, muito organizado, muito tradicional”, ela disse à BBC.
Moradora das margens do lago formado pela hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA), Silva afirmou que ribeirinhos e indígenas têm culturas parecidas.
“Vivemos do rio, temos aquele contato com a terra, necessitamos de estar na terra, sobrevivemos do peixe, da mata. Isso criou vínculos fortes entre as duas populações”, afirma.
Outra ribeirinha presente, Liliane Ferreira, 26 anos, da Reserva Extrativista Rio Iriri, diz que temia indígenas na infância.
Como muitos ribeirinhos, Ferreira tem sangue nordestino, bisneta de maranhenses que migraram para a Amazônia para trabalhar como seringueiros. Ela diz ter crescido ouvindo a avó contar histórias de índios que raptavam mulheres e crianças ribeirinhas.
“Uma vez ela estava caçando tatu e tentaram pegar ela”, conta Ferreira. “Quando diziam ‘tem índio solto aí’, eu ficava com medo.”
Ela afirma que a desconfiança se dissipou conforme passou a lutar ao lado de indígenas por causas comuns. Mas isso não a impediu de cutucar os anfitriões kayapós ao notar a fraca presença feminina no encontro.
“Eu perguntei: ‘vem cá, por que suas mulheres não participam das reuniões?’ Eles disseram que não pode, que só pode se os maridos permitirem. Achei curioso, porque, entre os ribeirinhos, nós estamos lá metidas no meio, não queremos sair da frente”, diz Ferreira.
No fim do evento, quando os kayapós convocaram os demais participantes a se agrupar para gravar um vídeo, Ferreira titubeou. Primeiro ficou dentro da casa dos homens, até ser chamada insistentemente pelos indígenas e outros ribeirinhos.
No fim, juntou-se ao grupo e até acompanhou a dança kayapó na festa de encerramento, que se esticaria até tarde da noite, agora com forró nordestino do repertório ribeirinho.
Por BBC Brasil
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