Preso há mais de um ano e quatro meses nas dependências da Superintendência da Policia Federal, em Curitiba, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva procura manter-se atualizado sobre a conjuntura política do país e do mundo por meio dos canais que são a ele autorizados.
Sem acesso a internet, pode acessar canais de TV aberta e receber informações por meio de arquivos em pen drives, papeis impressos ou relatos de seus advogados, assessores, amigos e companheiros de partido. Com essas limitações e a privação de liberdade, a leitura e as conversas tornaram-se algumas de suas práticas mais cultivadas.
Na manhã desta quarta-feira (3), Lula recebeu o Sul21 para uma entrevista exclusiva.
O ex-presidente chegou escoltado por um agente da Polícia Federal à sala reservada para as entrevistas no prédio da Polícia Federal.
O protocolo do encontro previa apenas um cumprimento rápido do entrevistado com os entrevistadores. A conversa iniciou logo e se estendeu por cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos.
No início da entrevista, Lula estava mais interessado em falar sobre os fatos políticos mais recentes da vida política nacional, em especial o caso da Vaza Jato, com a revelação de mensagens envolvendo o ministro Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato.
Publicamos a seguir a primeira parte dessa conversa, onde Lula também fala sobre aquilo que considera sérias ameaças à soberania que pairam sobre o país. Nos próximos dias, publicaremos o conteúdo completo dessa conversa.
Agora, eles tentam passar para a sociedade a ideia de que, quem está criticando o Moro, é contra a investigação de corrupção.
Temos a oportunidade de colocar esse debate em dia. Em primeiro lugar, um juiz não combate a corrupção.
Quem combate a corrupção é a polícia. O Ministério Público acusa e o juiz apenas julga. E o juiz não deve julgar com base na cara do réu, mas sim com as informações que ele tem nos autos do processo, avaliando se são verdadeiras ou mentirosas. Eu não estou falando do conjunto da Lava Jato porque se alguém roubou tem que estar preso.
Foi para isso que o PT, tanto no meu governo quanto no governo da Dilma, criou todos os mecanismos jurídicos para colocar ladrão na cadeia.
Eles agora tentam salvaguardar o comportamento do Moro e da força tarefa acusando os que são contra eles de serem favoráveis à corrupção.
O dado concreto aqui é que estou falando do meu caso e no meu caso eu posso olhar para você como se estivesse falando para o Moro e dizer “Moro, você é mentiroso. Dallagnol, você é mentiroso e os delegados que fizeram o inquérito são mentirosos.
Eu sei que é difícil e duro falar isso. É uma briga minha, um cidadão de 73 anos de idade, contra o aparato do Estado, contra a Receita Federal, Polícia Federal, Ministério Público e uma parte do Poder Judiciário. Somente quem sabe que eu estou dizendo a verdade é o Moro, o Dallagnol, o delegado que fez o inquérito e Deus.
Sul21: Quais seriam essas mentiras exatamente?
Lula: No meu caso, todas. Eles sabem que eu não sou dono do apartamento, eles sabem as mentiras que contaram para trazer o caso para Curitiba, porque ele deveria ter sido julgado em São Paulo, eles sabem que eu não sou dono do sítio de Atibaia.
Acontece, meu caro, que não era possível dar o golpe na Dilma e deixar o Lula ser candidato a presidente em 2018. Era preciso tirar o Lula da jogada. Para fazer isso, era preciso criar um empecilho jurídico e aí inventaram essa quantidade enorme de mentiras a meu respeito.
O Moro deveria mostrar que é um homem decente entregando o celular dele à Polícia Federal que é subordinada a ele.
O Dallagnol poderia entregar o celular dele. Enquanto está sob suspeita, o Moro poderia pedir licença do Ministério da Justiça e não ficar se escondendo atrás do cargo. Se ele mentiu, precisa ter coragem de assumir o que fez.
A Lava Jato é uma operação que se transformou em um partido político. A Globo se apoderou da Lava Jato em um pacto que ela fez com Moro e Dallagnol. Todas as mentiras que eles contavam eram transformadas em verdade no Jornal Nacional.
Eu digo isso porque sou a grande vítima disso. Deve ter mais de 100 horas do Jornal Nacional contra o Lula e deve ter mais de 100 horas favorável ao Moro.
Ainda agora vejo o esforço da Globo tentando tornar o Glenn um bandido para manter o Moro, que agora esquece tudo. Quando a gente ia prestar depoimento, ele fazia perguntas sobre fatos de quinze, vinte anos atrás. Só faltava perguntar: “quando você estava no útero da sua mãe, você se mexia para a direita ou para a esquerda?”.
Ele agora esquece tudo, não sabe mais o que falou no telefone. Ele sabe da conversa dele com o Dallagnol e da conversa do Dallagnol com os procuradores. Só falta coragem para assumir.
O seu Moro tem que ter a coragem de dizer a verdade. Ele, um dia, nem que seja no dia da extrema-unção, vai ter que pedir desculpas à sociedade brasileira pela mentira desvairada que ele contou ao meu respeito. É só isso que eu quero.
Quem roubou neste país que vá pra cadeia, seja pequeno, grande ou médio. Mas quem é inocente tem que ser absolvido. A única coisa que eu quero é que alguma instância do Poder Judiciário leia o mérito do meu processo e tome uma decisão.
Depois da mentira do Moro veio a mentira do TRF4. Eles nem leram o meu processo. O presidente do TRF4 não tinha nem lido e disse que a sentença do Moro era excepcional. Eu fui julgado a toque de caixa, antes que prescrevesse, porque o objetivo era não permitir que eu fosse candidato em 2018.
Não é Possível, em pleno século 21, alguém ser vítima do Poder Judiciário como estou sendo. Eu não creio que todo poder Judiciário é assim, mas essa parte se notabilizou por mentir a meu respeito.
Sul21: Em uma das conversas divulgadas, envolvendo Moro e Dallagnol, é feita uma referência de que seria preciso ouvir os americanos para realizar uma determinada ação, o que trouxe de novo à baila o tema de uma possível interferência externa, em especial dos Estados Unidos, na Lava Jato. Desde o governo Temer e agora com o governo Bolsonaro, temos visto o desmonte de alguns setores estratégicos da economia nacional, como a desativação do pólo naval, a venda da Embraer para a Boeing ou o acordo com os Estados Unidos envolvendo a base de Alcântara. Como o senhor vê essa possível articulação externa da Lava Jato?
Lula: Durante muito tempo na minha vida eu disse que não era adepto de teorias da conspiração. Hoje, por tudo o que tenho acompanhado pela imprensa nacional e internacional e pelas informações que recebo, pela pressa do pagamento da Petrobras aos acionistas americanos em detrimento dos acionistas brasileiros, pelos interesses que o pré-sal despertou nos Estados Unidos, mudei de opinião.
É importante lembrar que, quando nós descobrimos o pré-sal, os americanos retomaram o funcionamento da quarta frota que tinha sido desativada depois da Segunda Guerra Mundial. É importante lembrar também que foram roubados segredos da Petrobras, de um contêiner, e até hoje não se identificou quem fez isso. Quem pagou o pato foram os coitados dos vigias da Petrobras.
Hoje, estou certo de que há interesses do Departamento de Justiça dos Estados Unidos em desmontar esse país.
Não é possível acreditar que tudo aconteceu a partir do nada. Estou convencido que o pré-sal está no meio disso. Estou convencido que os americanos nunca aceitaram a ideia da lei da partilha que nós fizemos para que o petróleo fosse nosso, nunca aceitaram a ideia de que o povo brasileiro voltasse a ser dono do petróleo e que a Petrobras tivesse 30% de tudo.
Também nunca aceitaram a nossa ideia de criar um fundo social para garantir ao povo brasileiro o direito de ter acesso à ciência, tecnologia, educação e saúde.
Em nome de combater a corrupção, destruíram as empresas de engenharia brasileiras. Lembro, quando eu era presidente, quantas vezes os governantes queriam entrar no Brasil para competir com as nossas empresas.
Ao mesmo tempo, você fica assistindo a uma política de governo que tem como objetivo não produzir nada novo, mas só vender o que tem.
Se o Exército brasileiro não tomar cuidado, até os terrenos onde eles fazem treinamento serão vendidos e eles terão que treinar só em vídeo games.
A ideia deles é vender tudo. Essa é a única razão que explica o Guedes na Fazenda. O que está acontecendo no Brasil é um desmonte generalizado sem perspectiva de geração de emprego, de aumento de renda ou de manter a seguridade social dando ao trabalhador brasileiro a tranqüilidade na velhice. É o Brasil voltando ao século dezoito, voltando a ser colônia.
Embora você não tenha a monarquia portuguesa mandando, você tem o imperador Trump dando ordens e o nosso presidente batendo continência.
Isso tudo assusta. O que aconteceu com a Embraer e a Boeing não me agradou. A Embraer era uma empresa muito respeitada no mundo, que disputava com a Bombardier a posição de terceira empresa de aviação do mundo. Nós éramos altamente competitivos em aviões de porte médio.
É lamentável nós ficarmos sem uma empresa do porte da Embraer. Daqui a pouco nem o caça C-90, que estava sendo produzido pela Embraer, vai mais ser brasileiro. Tudo isso significa abrir mão da soberania do país.
A soberania de um país é coisa sagrada, da qual nenhum país sério abre mão. Os americanos não abrem mão, a Rússia não abre mão, a China não abre mão, mas o Brasil está abrindo.
Abrir mão da soberania significar abrir mão do controle de suas fronteiras, da ciência e da tecnologia, do controle da nossa floresta, da nossa fauna, da biodiversidade, da água, das riquezas do solo e do subsolo. Significa abrir mão, inclusive, da proteção de uma nação de 210 milhões de habitantes.
Sul21: Neste contexto da posição do Brasil no cenário internacional, o senhor já tem uma avaliação sobre o recém anunciado acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul?
Lula: Eu lembro do tempo que eu era presidente qual era a ideia da União Europeia. Não sei se isso se manteve. A União Europeia queria fazer um acordo desde que o Brasil e o Mercosul se abrissem para todos os produtos de alto valor tecnológico e de alto valor agregado, para que eles entrassem aqui sem pagar nada.
Isso significava quebrar a nossa indústria, significava impedir que países como a Argentina pudessem se reindustrializar.
Em troca, eles prometiam importar produtos agrícolas brasileiros. Não conheço os detalhes do acordo e não sei o que está escrito lá, mas a gente não tem muito o que exportar pra lá. E o que temos para exportar não será fácil os franceses aceitarem. Não pense que os franceses vão aceitar comprar frango ou porco do Brasil. Eles não queriam nem comprar óleo industrializado brasileiro, preferindo comprar soja in natura.
A impressão que tenho é que a União Europeia está tirando proveito de um momento de fragilidade eleitoral do presidente da Argentina.
Macri está vivendo um momento difícil e, quem sabe, a venda ufanista de um possível acordo que ainda vai ser discutido no parlamento de cada país, possa facilitar a sua eleição.
O mesmo raciocínio vale para a visita do Trump ao presidente da Coréia do Norte, que é uma propaganda eminentemente eleitoral. Trump não tinha o que fazer lá. Ele foi tirar foto pra campanha de 2020 que já começou.
Sul21: Neste tema da soberania nacional e da defesa dos interesses econômicos nacionais chama a atenção a posição das Forças Armadas que vêm apoiando as medidas de desmonte e venda de patrimônio que foram citadas aqui. Mesmo no período da ditadura, os militares adotaram algumas posturas de enfrentamento aos interesses dos Estados Unidos, como foi o caso do acordo nuclear com a Alemanha. Na sua opinião, houve uma mudança drástica do pensamento dos militares brasileiros sobre o tema da soberania nacional?
Lula: Os militares brasileiros, no período da ditadura, não desmontaram a economia nacional. Pelo contrario, fortaleceram o processo de industrialização no país, criaram programas como o do etanol em função da crise do petróleo.
Não sei se é uma posição do conjunto das Forças Armadas, mas o que estamos vendo agora, por meio da posição de alguns militares que falam pelo governo Bolsonaro, é um total desinteresse pela soberania nacional e uma disposição para vender tudo.
Eu disse em outra entrevista que um militar que não defenda a soberania nacional e não é nacionalista nem deveria chegar a general porque a obrigação das forças armadas é defender os interesses do país e de proteger o povo contra inimigos externos.
A entrada totalmente desregulamentada do capital estrangeiro para explorar as riquezas brasileiras significa abrir mão da soberania do país.
Embora o Bolsonaro bata continência para o Trump, ele está na contramão dele. O Trump é um direitista que utilizou como discurso o fortalecimento do Estado nacional. Resolveu comprar briga com a China, dizendo que era preciso gerar emprego nos Estados Unidos.
O Bolsonaro faz exatamente o contrário. Ele está desmontando o Brasil, desmontando a possibilidade de gerar emprego neste país a troco não sei do quê. O que está acontecendo no Brasil é muito estranho.
O país está passando por uma metamorfose doentia, onde a questão social não aparece em lugar nenhum. Os médicos cubanos foram embora e disseram que iriam colocar médicos no lugar deles.
Já faz seis meses que estão governando e há muitas cidades pelo país que não têm um médico. A sociedade brasileira precisa acordar. O Brasil precisa ser tratado como uma propriedade de 210 milhões de pessoas que têm o direito de viver dignamente.
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