Quem conhece um mínimo de história, sabe que não é a primeira vez que a mídia corporativa brasileira é porta-voz de uma espécie de gritaria generalizada em defesa de um dos lados em guerras nas quais o Brasil não tinha qualquer envolvimento.
Até aí não haveria muita diferença em relação ao que se verifica agora com a Guerra na Ucrânia, se não fosse o papel central que a mídia assumiu na contemporaneidade. Se não fossem, também, os grandes e gravíssimos prejuízos que tal envolvimento pode trazer para o Brasil e os brasileiros.
Desde que esta guerra começou oficialmente, todos os noticiários de jornais, rádios e TVs da mídia corporativa brasileira deixaram de lado qualquer assunto relativo ao país e só falam no conflito no Leste Europeu, apresentando-o da forma mais unilateral possível.
Seguem à risca as visões e interesses de uma das partes envolvida: os Estados Unidos e seus aliados europeus, integrantes do Tratado do Atlântico Norte, (OTAN) uma aliança militar, que deveria ter acabado, quando da extinção de seu equivalente, o Pacto de Varsóvia, após o fim da URSS, em 1991.
Pela visão “Ocidental” (leia-se Estados Unidos e Europa), a Rússia, país que vem sendo paulatinamente cercado por bases militares da OTAN, foi transformado em agressor.
O presidente Vladimir Putin, por reivindicar segurança para seu país e seus habitantes, está sendo pintado como ditador sanguinário. As ações russas, demandando negociação e cumprimento de compromissos por parte do Ocidente, são demonizadas e proteladas.
O presidente da Ucrânia, Zelensky, de neonazista e fantoche dos Estados Unidos, virou “herói nacional” e o Ocidente é apresentado como “mocinho” e “salvador da humanidade”.
É com esse quadro, absolutamente distorcido e radicalizado, que a mídia corporativa brasileira presta mais um desserviço ao país. Como se não bastasse desinformar e deformar os fatos, ainda cobra definição pró-Estados Unidos/OTAN do governo brasileiro.
Cobrança em parte já contemplada, com o voto do Brasil na Assembleia Geral Extraordinária da ONU somando-se aos que condenam a Rússia e alinhando-se aos Estados Unidos e à Europa.
Havia outra solução? Claro que sim. O Brasil poderia insistir na defesa da paz, na busca de negociações rápidas para por fim à guerra e ter se somado aos 35 países que se abstiveram nesta votação, entre eles dois pesos-pesados mundiais, China e Índia.
Aliás, China, Índia e Brasil, integrantes dos BRICS – junto com a própria Rússia e a África do Sul -, teriam legitimidade para se apresentar como mediadores num processo tão delicado e complexo. Tudo indica que a China cumprirá esse papel.
Quanto ao Brasil, perdeu-se outra vez na irrelevância e subserviência ao imperialismo estadunidense, que marcam o governo Jair Bolsonaro.
Recuperada do que foi o período em que teve como ministro das Relações Exteriores o terraplanista Ernesto Araújo, a diplomacia brasileira bem que tentou. A nota divulgada pelo Itamaraty e as primeiras manifestações do representante do país na ONU foram em defesa da paz e das negociações, características do soft power brasileiro.
No começo da guerra, surpreendentemente, até o próprio Bolsonaro procurou mostrar-se neutro, evitando apoio a Zelensky ou condenações à Rússia.
Não se sabe o quê fez Bolsonaro mudar de posição, especialmente depois do encontro que manteve, há poucas semanas, com o próprio Putin, em Moscou.
Especulações, no entanto, não faltam. Elas vão desde pesadas pressões da Casa Branca até temores de que sua atitude pudesse ter repercussões negativas para sua candidatura nas eleições presidenciais de outubro próximo.
Basta lembrar que pré-candidatos como o ex-juiz parcial Sergio Moro e o governador de São Paulo, João Doria, se apressaram em cerrar fileiras com os Estados Unidos na campanha contra Putin e a Rússia.
Mas se Bolsonaro confirma, mais uma vez, as afirmações e desmentidos e desmentidos dos desmentidos que caracterizam sua postura, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tão logo o conflito entre a Rússia e a Ucrânia – na realidade uma guerra por procuração entre os Estados Unidos/OTAN e a Rússia – teve início, condenou o episódio, exaltou a importância da negociação e da busca da paz.
Em viagem ao México – que, a exemplo das que realizou recentemente à Europa e à Argentina – a mídia corporativa brasileira praticamente ignorou, Lula reuniu-se com o presidente Andrés Manuel Lopes Obrador e voltou a defender o entendimento.
“A América Latina tem que estar unida nesse esforço para um mundo que quer a paz e não aguenta mais a guerra”, enfatizou em entrevista ao jornal La Jornada.
Reafirmando o que vem dizendo há anos, Lula defendeu a integração latino-americana e uma “reforma profunda” da governança global para enfrentar questões como pandemia, aquecimento e mudanças climáticas e desigualdades brutais dentro dos países e entre eles.
Lula elogiou o México pelo importante papel que tem desempenhado no plano internacional e, por meio da diversificação de suas relações, para a democracia na região e a construção de um mundo multipolar, de paz e cooperação.
É importante lembrar que foi exatamente essa postura que Lula adotou no que se refere às relações internacionais nos seus dois mandatos (2003-2010). Postura que lhe valeu o reconhecimento como um dos grandes, se não o maior, estadista da atualidade.
Nos oitos anos em que foi presidente, não faltaram problemas internacionais de todos os quilates.
Tão logo assumiu, Lula recebeu do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, o pedido para que o Brasil cerrasse fileiras com ele na invasão do Iraque. A resposta que Bush ouviu de Lula foi que a guerra dele era contra a fome no Brasil. Bush pode não ter gostado, mas o assunto morreu ali.
A Guerra do Iraque ou “Operação Iraque Livre”, como a denominavam os “falcões” nos Estados Unidos, durou oito anos. Ela se baseou na ideia de transformar o Iraque em “estado vilão” e Saddan Hussein em “grave ameaça para os Estados Unidos e seus aliados”. Até “provas” de que Hussein possuía um forte arsenal de armas químicas foram fartamente noticiadas pelo Ocidente.
O resultado é conhecido: as tais armas químicas nunca foram encontradas e hoje se sabe que não passaram de mentira contada pela Casa Branca e respaldada pelo governo inglês, principal aliado dos Estados Unidos na Europa.
O Iraque foi arrasado economicamente; o número de mortos no conflito varia entre 100 mil e 600 mil, dependendo de quem faz as contas; as promessas, antes da invasão, de que o país teria estabilidade não se concretizaram.
Outro exemplo da capacidade de Lula para evitar expor o Brasil a conflitos aconteceu com a vizinha Bolívia, em 2006. A decisão do governo Evo Morales de nacionalizar o petróleo e o gás, atingiu negócios da Petrobras.
Imediatamente editoriais de jornais como O Estado de S. Paulo passaram a defender que o governo brasileiro usasse a força para resolver o problema e até mesmo declarasse guerra ou invadisse a Bolívia.
Lula não fez nada disso e pacientemente negociou. Dezoito meses depois, a Bolívia pagava à Petrobras a indenização de US$ 112 milhões, pela transferência de suas duas refinarias para a estatal boliviana YPFB.
Por atitudes como essas, o governo Lula e a diplomacia brasileira, tendo à frente o chanceler Celso Amorim, conseguiram avanços antes impensáveis, responsáveis pela ampliação no número de membros do Mercosul, a criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), e a própria participação do Brasil no lançamento das bases do que veio a ser o BRICS, formalizado durante o governo Dilma Rousseff.
Como se sabe, a mídia corporativa brasileira, pautando-se pelos interesses de Washington, sempre foi contrária a qualquer tentativa de integração sul-americana ou latino-americana e jamais escondeu suas críticas em relação à aliança do Brasil com a Rússia, China, Índia e África do Sul. Aliança considerada de enorme importância na direção de um mundo multipolar.
Esse caminho para um mundo multipolar é exatamente o mesmo que a mídia corporativa brasileira ignora, ao cerrar fileiras, como faz agora na Guerra da Ucrânia, com as pretensões hegemônicas e imperialistas de sempre dos Estados Unidos e da própria Europa.
NA UCRÂNIA E NO BRASIL
Não é de agora que diferentes governos brasileiros enfrentam as baterias de uma mídia antinacional. Foi assim com Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Getúlio, que queria manter o Brasil neutro na Segunda Guerra Mundial, foi alvo de todo tipo de pressão de Assis Chateaubriand, o primeiro magnata da mídia brasileira, proprietário dos Diários e Emissoras Associados, precursor de Roberto Marinho.
O apoio do Brasil era disputado de forma um pouco velada, pelos países do eixo (Alemanha, Itália e Japão) e de maneira clara pelos aliados, especialmente Estados Unidos, Inglaterra e França.
Chateaubriand mostrava-se incansável na campanha pró-Estados Unidos e chegou a propor à embaixada daquele país no Brasil iniciar, ele próprio, o alistamento de brasileiros para irem à guerra.
Depois que navios brasileiros foram atacados pela marinha alemã e diante do escarcéu que a mídia da época fez, Vargas decidiu, em 1942, entrar em acordo com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, para a participação do país na guerra.
Chama a atenção neste episódio, a semelhança com a Guerra Hispano-Americana que aconteceu em 1898, tendo como resultado o ganho do controle, por parte dos Estados Unidos, sobre antigas colônias espanholas no Caribe e no Oceano Pacífico.
A guerra teve início quando um navio militar dos Estados Unidos explodiu no porto de Havana. Sem qualquer comprovação, a explosão foi atribuída aos espanhóis.
É dessa época o nada edificante diálogo entre o então magnata da imprensa estadunidense William Randolph Hearst e um jornalista por ele designado para cobrir a guerra.
Ao comunicar a seu patrão que em Havana não havia qualquer sinal de guerra, ouviu dele as instruções para que lhe enviasse as imagens, pois da guerra ele cuidaria.
Essa passagem envergonhou parte da mídia estadunidense e deu origem à luta que outro magnata na época, Joseph Pulitzer, empreendeu, cobrando ética e seriedade por parte dos jornais de então. Não por acaso o maior prêmio de jornalismo nos Estados Unidos leva o seu nome.
Quanto ao Brasil, sempre chamou atenção de alguns estudiosos da mídia nacional, o principal prêmio de jornalismo ter o nome de uma empresa estadunidense de petróleo, a Esso, que chegou ao Brasil em 1912 e foi, desde então, parte ativa para tentar convencer autoridades e população que o país não possuía jazidas de petróleo.
Atuando em parceria com a petroleira anglo-holandesa Shell, esteve recentemente também entre as responsáveis pelas mudanças nas regras do pré-sal brasileiro, descoberta que está na raiz do golpe de que foi vítima a então presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Como se sabe, a Petrobras, estatal brasileira que descobriu o pré-sal e chegou a ser uma das maiores do mundo, está sendo desmontada, com suas refinarias leiloadas a preço de banana, sua rede de postos de distribuição privatizada e dividendos fabulosos destinados apenas a seus acionistas nacionais e internacionais.
Esse assunto, no entanto, é tabu na mídia corporativa brasileira, que, desde sempre, aplaudiu toda e qualquer agenda de privatizações dos bens públicos nacionais.
JK, que fez de tudo para desenvolver o Brasil, teve sua proposta de integração latino-americana (Operação Pan-Americana) sabotada pela mídia corporativa e pelo Tio Sam. O que, na prática, é quase a mesma coisa.
O que ele defendia era uma proposta de desenvolvimento econômico para a América Latina nos moldes do Plano Marshall posto em prática pelos Estados Unidos para reconstruir a Europa no pós-Segunda Guerra Mundial. Afinal, os brasileiros tinham participado dos esforços de guerra junto com os aliados.
Ao contrário do que muitos possam pensar, existe relação entre a situação vivida na Ucrânia, a partir de 2014 e no Brasil, de 2016 em diante.
Lá, um governo democraticamente eleito, aliado de Moscou, foi derrubado por meio de uma guerra híbrida (protestos de rua, denúncias de corrupção, campanha de mídia contra o governo) e substituído por outro, com o apoio dos Estados Unidos.
Zelensky é o terceiro presidente da Ucrânia depois desse processo e sobre ele pesam evidências e provas de sua ligação com grupos neonazistas e a realização de sistemáticos massacres de populações russas.
Ele próprio, durante a campanha eleitoral, apresentou-se portando armas e defendendo a morte de todos os congressistas e políticos de seu país. Ex-comediante, ele é uma mistura de Danilo Gentili com Bolsonaro e só se elegeu devido ao processo de ódio à democracia desencadeado pela mídia local.
Qualquer semelhança com o que aconteceu no Brasil e está em processo não é mera coincidência.
A mídia corporativa brasileira se esquece de tudo isso. Como parece já ter se esquecido do que disse e tem feito Bolsonaro no que se refere às violações dos direitos humanos, destruição do meio ambiente, entrega do patrimônio nacional e absoluto descaso em relação à pandemia.
A morte, sem necessidade, de pelo menos um terço das 650 mil vítimas da covid-19 no Brasil não é uma cifra superior à da maioria das guerras no mundo?
“A PRIMEIRA VÍTIMA”
Em 1917, em meio às diversas versões sobre a Grande Guerra (depois rebatizada de Primeira Guerra Mundial) o ex-governador da Califórnia e então senador estadunidense Hiram Johnson, do Partido Progressista, fez uma declaração que se tornou célebre: “a primeira vítima, quando começa a guerra, é a verdade”.
Johnson integrou o Senado de seu país até 1945, período em que teve oportunidade de confirmar, inúmeras vezes, o acerto de sua declaração.
A frase de Johnson serviu de epígrafe para o livro A Primeira Vítima, do australiano Phillip Knightley (1929-2016), ele próprio um consagrado jornalista investigativo e correspondente de guerra em algumas das mais importantes frentes de batalha no século XX.
Publicado em 1975, o livro de Knightley aborda o papel do correspondente de guerra como herói, propagandista e fabricante de mitos, tomando como referência conflitos desde o a da Crimeia (1853-1856) até o Vietnã (1955-1975).
Unindo um cuidadoso trabalho de investigação histórica e de reportagem, ele mostra como os jornalistas ocidentais e seus patrões distorceram e manipularam os fatos sempre que lhes foi conveniente.
Knightley abordou guerras que hoje podem ser chamadas de convencionais, com a presença de tropas e tanques para a tomada de territórios.
Não deixa de ser um exercício interessante pensar qual seria a visão dele sobre as guerras híbridas, características deste início de século XXI, onde a mídia e a internet utilizadas como principais campos de batalha, foram transformadas em locais para a conquista de corações e mentes.
Basta verificar o aumento absurdo de mentiras, desinformações e fake news que passaram a circular nas redes sociais ocidentais nos últimos dias, marcadas pela russofobia e pela tentativa de colocar o pensamento ocidental como superior.
Não por acaso, na “democrática” Comunidade Europeia, o parlamento do bloco votou pela retirada do ar dos dois canais oficiais russos: Sputnik e Russia Today. Chutar o balde da suposta liberdade de imprensa parece não incomodar aos europeus.
O acesso a um só lado da questão confirma e atualiza o que mostrou Knightley sobre a verdade como primeira vítima.
Como alguém pode formar opinião equilibrada conhecendo apenas um lado da questão?
Por tudo isso, outro autor, desta vez brasileiro, que morou nos Estados Unidos nos anos 1920, merece igualmente ser revisitado.
Engenheiro e economista, um dos fundadores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, Osório da Rocha Diniz, na condição de especialista na empresa General Eletric, que já era grande e viria a ser um dos gigantes globais em áreas tão vitais como produção de energia, turbinas de avião e serviços financeiros, pode acompanhar por dentro parte do processo de desenvolvimento dos Estados Unidos.
Neste período, o Tio Sam lançava as bases do seu imperialismo ou de sua hegemonia sobre a América Latina e, na sequência da Segunda Guerra Mundial, sobre grande parte do planeta.
A partir dessas vivências e reflexões, Rocha Diniz publicou, de volta ao Brasil, dois livros que se tornaram clássicos e integram a famosa coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional. São eles: A política que convém ao Brasil (1937) e O Brasil em face dos Imperialismos Modernos (1940).
Na época, as duas publicações deram o que falar, pois apresentavam para a população e as ditas elites dirigentes brasileiras uma realidade que estavam longe de enxergar.
Basta lembrar que até então essas elites, inclusive as intelectuais e parte das esquerdas, continuavam com os olhos voltados para a Europa, enquanto o centro do poder mundial se deslocava rapidamente para os Estados Unidos.
Algo semelhante se repete nos dias atuais, agora com os Estados Unidos em relação aos países asiáticos, especialmente a China.
Outra vez, a elite brasileira e a própria mídia corporativa, sua porta-voz, não percebe a emergência do novo e insiste na defesa cega e equivocada dos interesses dos Estados Unidos, num mundo em acelerada transformação.
Tamanha histeria por parte da mídia corporativa brasileira e das elites ocidentais pode ser lida também como uma espécie de desespero diante da perda de importância da Europa (cada vez mais subserviente aos Estados Unidos e dominada pela extrema-direita) e da ascensão da China como provável maior potência mundial até 2030.
A exemplo de outros impérios que marcaram a história do nosso planeta, não há como negar que o declínio dos Estados Unidos já começou.
Não por acaso, em seu discurso de posse, Joe Biden definiu como prioridade de sua política externa, a “contenção” da Rússia e da China.
Entender o que está acontecendo na Guerra da Ucrânia, por este prisma, é fundamental para países como o Brasil.
Lula está certo quando diz que nossa guerra é contra a fome, a desigualdade e em defesa de um mundo multipolar.
A política que convém ao Brasil é essa.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG
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