Caso contrário, não teríamos criminosos cobrando IPTU, fiscalizando trânsito e impedindo vacinação
Uma cabine blindada da PM no Complexo do Lins, Rio de Janeiro Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
O Estado brasileiro é, antes de tudo, um fraco na área de Segurança Pública. Frouxo. Banana. Para quem tem o monopólio do uso legítimo da força, ele deixa correr solto. E a sociedade vai a reboque, naturalizando tudo e aplaudindo o desfile dessa escola de samba sem enredo e sem rumo. À maneira de um bully de escola primária, o Estado é muito macho na hora de acossar o cidadão isolado. Mas fica bastante leniente — ou faz cara de paisagem — no momento de trombar com os reais problemas da segurança.
Exemplos? Tráfico assume o controle de estações do BRT, diz secretário /Bandidos fiscalizam trânsito e ameaçam moradores de aglomerado /Traficantes impedem equipe de vacinar contra o sarampo no Jorge Teixeira / Traficantes obrigam técnicos a instalar tomadas e interruptores em postes em Angra dos Reis / Tráfico convocou reunião de condomínio no ‘Minha casa, minha vida’ para definir valor da taxa de manutenção /Tráfico cobra ‘IPTU do crime’ na Cidade Alta
Como chegamos ao ponto em que bandidos de vários pontos do país fiscalizam o trânsito, cobram IPTU, orientam técnicos de empresa de energia, convocam reunião de condomínio, controlam vacinação? E nem estamos abordando as fofuras com as quais a milícia do Rio de Janeiro afaga o cidadão, como a venda de internet e TV a cabo, a invasão de imóveis, a cobrança de taxas de segurança, os assassinatos, a lei marcial que impõe a bairros inteiros.
Como naturalizamos que “a favela X é dominada pela facção Y” ou “a milícia Z controla a venda de gás no bairro W”? Como o Estado aceitou bovinamente que partes expressivas do território brasileiro deixassem, efetivamente, de ser controladas por ele? Apenas na cidade do Rio, havia, em 2011, 46 quilômetros quadrados de favelas . Parte delas não tem presença do crime, mas todas as favelas médias e grandes que conheço estão debaixo do tacão do tráfico ou da milícia. Digamos que essas somem 40 quilômetros quadrados. É o equivalente à área do município de Mesquita, na Baixada Fluminense, ou de Olinda, em Pernambuco. Alguém aceitaria um município inteiro sob o controle do crime, onde a livre circulação de pessoas fosse proibida e as leis do país, a começar pela Constituição, valessem pouco ou nada?
E isso se refere apenas à cidade do Rio. Some as áreas sob controle do crime nos outros municípios do estado do Rio de Janeiro, e depois dos outros estados, e chegaremos à quanto? No Censo de 2010, o IBGE identificou mais de 6.300 favelas no país , com 11,4 milhões de pessoas vivendo nelas. É a população de Portugal. Hoje, quase dez anos depois, certamente é muito mais gente. Morando numa área muito maior.
Adianta pouco ou nada dizer quais providências o Estado tomou depois que as notícias mostradas acima — e milhares de outras de semelhante teor — foram publicadas. Tenho especial interesse no que ele fez ou deixou de fazer antes que descalabros desse quilate viessem à luz. No mais das vezes, o jogo correu solto e, quando o caos se instalou, algum agente do Estado fez uma expressão indignada e disse que tomaria uma atitude.
Falando especificamente do caso do Rio, já ficou cansativo ter de dizer o óbvio: não está funcionando o roteiro “polícia entra em favelas, troca tiros, mata traficantes e apreende uma pistola aqui, um fuzil ali, meia dúzia de trouxinhas de maconha acolá”. Expõe o policial e os moradores inocentes a risco e tem zero efeito prático. No mesmo dia da operação policial, a boca de fumo abre normalmente, os bandidos circulam livremente e nem um metro de território da favela terá pulado para dentro do Estado Democrático de Direito. Continua tudo na mão do Estado Paralelo do Crime.
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) até pareciam ser uma tentativa de recuperar território e acabar com o controle dos bandidos. Mas só até a página 2. O discurso do Estado, no início, era “o tráfico acabou”. Antes que houvesse tempo de comemorar, virou “não tem como acabar com o tráfico, mas a ostensividade armada já era”. Quando as armas apareceram na mão dos traficantes, a justificativa foi trocada para “Não tem mais fuzil”. Mas os fuzis deram as caras e, no fim, o problema da segurança pública nas favelas ocupadas se converteu nas vielas apertadas que dificultavam a entrada da polícia.
Qual é a saída? Não sei, não sou especialista em Segurança Pública. Mas acho que ações como a Operação Égide, da Polícia Rodoviária Federal, em conjunto com a Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos da Polícia Civil do Rio, são uma boa opção. Em lugar de atuar no varejo do combate ao crime, a PRF e a Desarme pegam armas, munição, drogas e criminosos em batelada, nas estradas. Este ano, já apreenderam mais de 330 armas, 2,3 toneladas de cocaína e 80 mil munições, entre outras coisas. É um caminhão de dinheiro que os traficantes viram ir pelo ralo.
O que já se tornou complicado de aceitar, ao menos para mim, é que o Estado aja como se o controle de parte do território brasileiro por criminosos fosse uma verdade natural a ser tolerada. Não é. E não se trata um garimpo clandestino no meio do mato tomado por estrangeiros na fronteira, digamos, com a Bolívia. Estou falando de Ipanema, no meio da Zona Sul do Rio. Chegará a hora em que o governo federal terá de tomar uma de quatro decisões: capitular e aceitar que existe, distribuído por pontos esparsos do país, um território chamado Bandidolândia; liberar para valer a venda e o consumo de drogas, que são a gênese de boa parte do crime no Brasil; coibir para valer a venda e o consumo de drogas, com leis draconianas; ou declarar uma guerra civil aberta ao crime, decretando estado de sítio. Todas elas são amargas em alguma medida, causarão dor e revolta, mas a permissividade do Estado com o crime durou tanto que o tempo das soluções palatáveis parece ter se esgotado.
Agência O Globo