Inspirado no compositor Flávio Henrique, grupo de Belo Horizonte segue a tradição de contar a vida política do País por meio do gênero
A primeira marchinha de sucesso do grupo foi sobre o helicóptero de Zezé Perrella
No carnaval passado, a Orquestra Royal não poupou trocadilhos e expressões de duplo sentido nas marchinhas Pinto por Cima, sobre a obsessão de João Doria contra o grafite em São Paulo, e Solta o Cano, uma crítica à letargia do Judiciário em casos envolvendo o PSDB.
Neste ano, em vez de “É melhor Jair se acostumando”, slogan informal dos eleitores de Bolsonaro, o grupo mineiro sugere na marchinha Bolsomico: “É melhor Jair embora/ Sair correndo para a aula de história.” Sobra também para o desfile de decisões favoráveis de Gilmar Mendes a seus aliados na divertida Dancinha da Tornozeleira.
Desde 2013, o grupo mineiro segue uma velha tradição carnavalesca de contar a vida política do País em jogos de palavras e piadas ambíguas embaladas por compassos binários. Entre os anos de 1920 e 1960, o gênero da marchinha cobriu musicalmente os fatos de maior relevância no Brasil, do autoritarismo de Arthur Bernardes ao moralismo de Eurico Gaspar Dutra, passando pela Revolução de 1930 e a Segunda Guerra Mundial.
Em baixa em décadas recentes, as marchinhas têm voltado cada vez mais à cena não apenas em razão da crise política, mas pela facilidade com que podem ser adaptadas à linguagem das redes sociais por meio de vídeos divertidos e de edição rápida.
Compositor da Orquestra Royal, Vitor Velloso define uma boa canção do gênero como “curta, direta ao ponto, engraçada e repetitiva”, características imprescindíveis em qualquer meme capaz de viralizar nas redes sociais. Lançado em fevereiro, o vídeo da marchinha Bolsomico (assista ao fim da matéria) já registrou mais de 2 milhões de visualizações. Após uma agenda intensa no carnaval de 2017, a Orquestra apresenta-se neste domingo 4 no pré-carnaval de Belo Horizonte.
“O formato da marchinha cai como uma luva para os tempos de hoje”, diz Velloso. “Vivemos na era do déficit de atenção coletivo. Nos nossos vídeos, a cada dois segundos existe uma piada nova na tela e em dois minutos a música já acabou.”
Além das condições políticas e culturais propícias, as marchinhas devem seu aparente renascimento à cena musical de Belo Horizonte. Antes da Orquestra Royal, o pioneiro no gênero foi o músico e jornalista Flávio Henrique. Ex-parceiro de Milton Nascimento, Lô Borges e outros integrantes do Clube da Esquina, o músico, também presidente da Empresa Mineira de Comunicação, morreu em janeiro por complicações decorrentes de febre amarela.
Em 2012, Flávio não tinha Doria para ironizar, mas contava com Léo Burguês, então presidente da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte. De nome sugestivo, o tucano foi alvo de uma denúncia naquele ano por contratar com dinheiro da Casa um buffet comandado por sua madrasta.
Flávio Henrique inspirou-se no episódio para compor “Coxinha da Madrasta”, que tripudiava do nome do deputado e da denúncia. “Milhares de reais por mês pro lanchinho do burguês”, ironiza um dos versos.
Com a canção, o compositor ganhou o então recém-criado Concurso de Marchinhas Mestre Jonas, que, à semelhança dos velhos festivais de música dos anos 1960, ajudou a alavancar uma nova geração de compositores mineiros de marchinhas, a exemplo de Velloso. “O Flavio foi quem começou tudo. Quem jogou a primeira pedra na vidraça da hipocrisia”, lembra o compositor da Orquestra Royal.
Após o sucesso de “Coxinha da Madrasta”, o grupo de amigos que formaria a Orquestra Royal passou a investir também em marchinhas sobre política. A primeira tentativa de Velloso foi uma composição sobre os médicos cubanos que chegavam ao País em 2013. A canção, diz, não chamou muita atenção.
Pouco depois, a apreensão de 450 quilos de pasta-base de cocaína no helicóptero do senador mineiro Zezé Perrela serviu de inspiração para “Baile do Pó Royal”, que fez sucesso ao trazer um malicioso trocadilho: “O pó rela no pé, O pé rela no pó”. Além da premiação no Mestre Jonas, a marchinha acabou por batizar a orquestra mineira.
A ascensão recente das marchinhas coincide com aquele que promete ser um dos carnavais mais politizados dos últimos anos. A Paraíso do Tuiuti, escola da primeira divisão do Rio de Janeiro, terá uma ala destinada a criticar os paneleiros pró-impeachment e Michel Temer, a ser retratado como um vampiro. Ataques nada frontais ao prefeito carioca Marcelo Crivella, do PRB, estão previstos na Sapucaí: seu nome deve estampar a alegoria de uma bunda gigante da Mangueira.
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Se haverá política no carnaval das escolas de samba, é provável que nos blocos de rua o tema ganhe ainda mais peso. “Estamos mudando de uma realidade de cordas, de segregação e de camarotes para um carnaval de rua, popular e miscigenado”, analisa Velloso. “Os carnavais de São Paulo e Belo Horizonte estão despontando como uns dos maiores do Brasil. A rua fala a verdade da rua. O show é menos ensaiado. Talvez por isso haja tanta resistência do Estado ao carnaval popular.”
Marchinhas estão diretamente ligadas ao carnaval de rua. Se esse último floresceu em Belo Horizonte nos últimos anos pelo esforço coletivo, a recriação moderna do gênero musical em Minas deve-se principalmente a Flávio Henrique, diz Velloso. “É no trinco que ele fez que nós batemos todos os anos. Todas as risadas e incômodos que a Orquestra Royal causou, devemos a ele.”
Conheça algumas das marchinhas da Orquestra Royal:
Bolsomico
“Bolsomico ia se chamar ‘Aula de História'”, conta Velloso. “Originalmente não era tão focada no deputado, mas sim nessa massa conservadora que apoia ideias muito retrógradas no Brasil, como apoiar censura, pedir intervenção militar, negar a ditadura. De repente percebemos que o deputado encampava todas estas ideias… ele virou o tema central por meritocracia pura.”
Dancinha da Tornozeleira
“A Dancinha da Tornozeleira veio da ideia de que as pessoas que estavam “dançando” na Lava Jato, uma a uma estavam ficando impunes e o carnaval se concretizando como uma grande farra”, diz o compositor. “Já pensou se eles fizessem uma festa? Um bloco? O que eles dançariam? A dancinha da tornozeleira, é claro.’
Pinto por Cima
“Se alguém viajasse no tempo dos anos 80 pra cá e visse o Doria na tevê, teria certeza de que é um personagem do Chico Anysio”, brinca Velloso. ” Quando vi o empedernido homem do pullover vestido de gari, dizendo que ia pintar por cima dos grafites da cidade, a piada já estava pronta. Pinto por cima foi escrita em minutos. Um presente que o Doria nos deu.”
Solta o Cano
“Solta o Cano” foi um processo mais lento. Primeiro veio a constatação de que os tucanos sempre se safavam das denúncias. Depois evoluiu para a frase ‘Só o tucano que não cai'”, lembra Velloso. “Nos jornais só se falava em vazamentos. Da Lava Jato, do Aécio Neves, do Donald Trump… tinha o desafio de unir as duas ideias. Então “só o tucano” virou “solta o cano”. As metáforas foram aparecendo e a letra desabrochou.”