Parece ironia, jogo de palavras.
Mas não é.
O The Intercept, assim como um raio caído num dia de céu azul, deixou-a estupefata e sem rumo, num primeiro momento.
Que diabo é isso? – pareciam perguntar editores tão acostumados à placidez dos dias.
Placidez em dias tão turbulentos?
Placidez porque estava tudo acordado, rumo traçado. Vivera tão agarrada a um projeto político, a uma pauta diária tão rotineira, conservadora que só ela.
Nunca se conformara com a ascensão de Lula, fizera dele seu inimigo predileto, apoiara o golpe de 2016, engajara-se na campanha de Bolsonaro, fizera da Lava Jato e de seu juiz-comandante uma fonte inesgotável de pautas-vazamento, fazia uma ou outra crítica ao novo presidente, mas nada que a tirasse do apoio às reformas, sobretudo à reforma da Previdência, sua cláusula pétrea nesse momento.
Que placidez, que águas tão tranquilas.
Havia tempo, muito tempo, que a mídia empresarial desconhecia o que fosse jornalismo investigativo.
Conscientemente.
Isso demanda tempo e dinheiro.
Tempo até dispunha, mas não iria gastá-lo para detalhar o que já sabia.
Dinheiro é sempre questão de prioridade.
Ora, ora, quem não sabia que a operação Lava Jato tinha objetivos definidos, o mais caro deles, a prisão de Lula?
Prisão executada, eleição dele evitada, agora era levar em banho-maria, e se fosse inevitável a eleição de Bolsonaro, que viesse.
E houve momento em que todos embarcaram.
Qualquer coisa melhor que o Lula.
Qualquer coisa melhor que o PT.
E se viessem escândalos no novo governo, era alimentá-los por um tempo em fogo brando, não recusar a notícia, mas pouco a pouco tratava-se de ir sepultando-os, fazendo de conta não fossem tão importantes assim, escondendo-os num canto de página, ou pé de página.
Notícia, ora notícia.
Nós a fazemos, sempre acreditaram os editores, atentos ao que o negócio define como tal, alertas ao rumo político das grandes corporações midiáticas.
Quando algum editor, algum jornalista capaz de raciocinar por conta própria, se dá o direito de se manifestar, que se jogue-o no olho da rua, e são vários os exemplos recentes.
Milicianos, Queiroz, um escândalo vinculado à família presidencial, ao mais íntimo dela, podem ser jogados para debaixo do tapete, como tem sido.
E tem sido porque o jornalismo é ignorado, razões políticas se impõem.
E econômicas.
Há alguma desculpa para que não se descubra o cidadão Fabrício Queiroz?
Para que não se saiba o endereço dele?
Nenhuma.
E no caso não era necessário nem tempo nem dinheiro.
Bastava fosse uma prioridade.
E não era.
Como provado está.
Antes do The Intercept, para fazer justiça, Lula, seus advogados de defesa, centenas de outros, livros e mais livros, tantos blogs e sites progressistas, militantes, denunciaram ao Brasil e ao mundo o caráter da Lava Jato e a obsessão de Moro com relação a Lula.
A mídia empresarial jamais deu importância à afirmação comprovada da inocência de Lula, nem à impressionante repercussão na mídia do mundo inteiro, que o considera um prisioneiro político, como de fato é.
A operação Lava Jato nunca teve nada a ver com justiça.
E sempre foi acompanhada, em seus objetivos, pela mídia empresarial, que serviu aos desígnios dela com um servilismo a dar vergonha a quem quer que exerça jornalismo com algum grau de seriedade.
E de repente, surge quem faça jornalismo.
Simples: jornalismo.
Aquele que os manuais de antigamente ensinavam, desconhecido havia muito tempo de nossa mídia monopolista.
Snowden, Assange, Greenwald, tantos outros, chegaram para evidenciar a pobreza do jornalismo no mundo. Para desafiar até mesmo os quase impenetráveis arquivos dos EUA. Provaram que é possível o jornalismo investigativo, se houver disposição, coragem, clareza de objetivos para tanto.
Abriu-se a cratera.
Um corre-corre.
O The Intercept desnudava o herói inventado pela mídia empresarial-monopolista.
Além da quebra de todas as regras da relação entre procuradores e juiz, da notória decisão prévia quanto à condenação de Lula, do escárnio permanente em relação à defesa, do desprezo às provas, do desrespeito do juiz aos seus próprios pares, da subordinação absoluta e vergonhosa dos procuradores a ele, a transformar tudo num simulacro de julgamento, há a evidência manifesta da relação entre a mídia e a Lava Jato, a pauta conduzida pela República de Curitiba, procedimento obscenamente naturalizado, sem que repórteres e editores sequer corassem.
E na mídia empresarial-monopolista não houve exceção. Todos os veículos beberam da mesma fonte sem pudor, fingindo que faziam jornalismo, sem checar nada do que lhes era dito.
E agora, José?
Não há desculpa possível.
Há repórteres bem-intencionados e que não tinham conhecimento de tanta cumplicidade da mídia com a Lava Jato a se perguntar: por que não fomos nós a descobrir tudo isso?
Porque não havia interesse, caras-pálidas.
Porque os interesses eram bem outros, e coincidiam com os da República de Curitiba.
Diante da cratera, a parte majoritária correu em socorro de seu herói, morou?
Rede Globo de Televisão, Rede Record, SBT, O Globo, Estadão, entre outros veículos, seguiram a linha editorial ditada por Moro – estão até agora à procura de hackers, de “vazamentos criminosos”, num dois pesos e duas medidas absurdo.
Moro e procuradores sempre defenderam os vazamentos, subsidiando manchetes a serviço de óbvios interesses políticos, que pudessem ir minando Lula e o PT, coisa já dita antes por quem tinha olhos para ver, agora revelada pelo exercício de um jornalismo independente, por um site.
A Folha de S. Paulo, depois de alguns dias de vacilação, resolve fazer parceria com o site The Intercept, e isso deve ser saudado como positivo, como o é o trabalho jornalístico de Reinaldo Azevedo, âncora do programa “O É da Coisa”, da BandNews, antigo crítico do PT, hoje defensor da soltura de Lula pela ausência de provas. Nas últimas horas, fala-se que outro veículo irá difundir também o material do The Intercept.
Curioso, não é?
Autocrítica que é bom, nada.
As revistas semanais, de modo geral, se mexeram, sem a ousadia da Folha e de Azevedo.
Alguns repórteres da Folha, quem sabe, podem ter ficado decepcionados ao ter que simplesmente serem checadores do material feito pelo The Intercept.
Nunca é a mesma coisa, não?
O tesão de ir atrás da verdade, investigar malfeitos, flagrar autoridades cometendo crimes, ainda mais se a dita autoridade simulasse sempre a integridade que não tem, desmontar sepulcros caiados, esse tesão não tem preço.
Não, mas faz tempo que a Folha não tem mais nada a ver com tal jornalismo.
Já é muito para ela ir atrás da apuração de um site.
Lembrar: Paulo Henrique Amorim foi afastado do “Domingo Espetacular”, da Record, por pressão do governo Bolsonaro. É editor-apresentador do blog Conversa Afiada, cujo jornalismo combate criativa e firmemente o governo atual. Um dos mais notáveis jornalistas brasileiros, situados entre os poucos que não esqueceram antigas lições, coragem e verdade andando juntas na sua atuação.
Marco Antônio Villa, crítico contumaz do PT, foi demitido da Jovem Pan porque vinha criticando o governo federal, Bolsonaro de modo particular.
Difícil dizer se, diante da cratera aberta, a mídia empresarial-monopolista vai tentar fazer jornalismo.
Não vai.
Para ela, não tem mais volta.
Uma escolha.
Há muito tempo atravessou o Rubicão, unificando seus interesses aos dos poderosos, exclusivamente.
Vai se equilibrar na corda bamba até que o vendaval The Intercept passe, fazer de conta que nada aconteceu, esperar a aprovação da reforma da Previdência, e depois avaliar o que fazer.
E é muito difícil que seja enfrentar pra valer Bolsonaro porque qualquer contratempo mais sério pode implicar num fortalecimento da esquerda, o PT ou outro partido qualquer desse campo.
Como se sabe, ela quer tudo, menos Lula, menos o PT, menos qualquer um de esquerda.
Melhor um presidente mambembe do que um a querer novamente governar para os pobres.
A mídia empresarial-monopolista não se dispõe a fazer jornalismo liberal-republicano.
Não sei se chegou a existir a modalidade num Brasil marcado por privilégios seculares, advindos de uma história marcada pela escravidão.
A luta de classes perpassa o jornalismo em qualquer parte do mundo.
No Brasil, de modo muito mais acentuado, a ponto de transformar essa mídia empresarial-monopolista num partido monolítico mais sólido do que em qualquer outro país, sempre a favor das classes dominantes, que ela integra como porta-voz essencial.
O episódio do The Intercept a deixou nua.
Novamente.
Não é uma imagem bonita quando tudo é revelado.
Mas, insista-se: ela nem corar, cora.
Procura novas vestes, e segue adiante como se nada tivesse ocorrido.
Até que encontre o fundo do poço.
Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate: