A história de povos e países é feita de momentos de orgulho e também de decepções, mas a vitória de Lopez Obrador nas eleições mexicanas tem um significado para a América Latina que não pode ser ignorado.
Desde 2009, quando Manuel Zelaya foi sequestrado no palácio presidencial de Honduras, o universo politico abaixo do Rio Grande, que separa os EUA do México, enfrenta uma maré de retrocessos e derrotas. No Paraguai, em 2014, Fernando Lugo foi deposto por um golpe de Estado, que seria aplicado com Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016. Na Argentina e no Chile, governos de inegável traço progressista foram substituídos, nas urnas, pelo conservadorismo aberto. Na Venezuela de Hugo Chávez e Nicolas Maduro, um governo comprometido com a defesa das riquezas nacionais e com melhoria da condições de vida dos mais pobres resiste como pode contra uma guerra econômica que pretende abrir caminho para uma intervenção militar orquestrada por Washington.
Nessa paisagem, a vitória de Obrador contém promessa de um acerto de contas dos mexicanos com sua própria história e representa um novo oxigênio para o conjunto um Continente enfraquecido pela recolonização econômica pela sabotagem da democracia — que ameaça impedir, no Brasil, a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, tão popular e tão favorito como Obrador entre os mexicanos, que o elegeram por mais de 50% dos votos, ontem. Não se trata, para começar, de uma peça secundária na região — mas a segunda economia, atrás apenas do Brasil.
Sabemos que há décadas que as fraudes, os assassinatos e a corrupção se tornaram as principais ameaças à democracia mexicana, governado por um sistema que os estudiosos classificam como ditadura civil de partido único. A história do país é formada de revoluções, tempos de calmaria e de conservadorismo em toda linha. Entre 1934 e 1940, o México teve um presidente, Lázaro Cárdenas, que estatizou o petróleo, defendeu os sindicatos de trabalhadores e consolidou a reforma agrária. Também firmou a tradição, rompida décadas depois, de uma diplomacia independente — responsável, entre outras coisas, pelo asilo a Leon Trotsky, perseguido na época por nazistas e stalinistas.
Em 1988, uma fraude escancarada assegurou a vitória de Salinas de Gortari, candidato que transformou o país numa correia de transmissão dos interesses dos Estados Unidos na região. Contemporâneo do governo de Fernando Collor no Brasil, impedido de cumprir um projeto semelhante em nosso país em função do impeachment, Salinas colocou a dominação dos EUA sobre a região em novo patamar econômico, político e diplomático. Assinou o tratado de livre comércio com os EUA, o Nafta, que abriu as riquezas do país para investidores externos, inviabilizou o sistema de pequenas propriedades da agricultura que dava trabalho e renda para grande parte da população pobre do país. Em pouco tempo, o exemplo de Salinas logo seria copiado por vários vizinhos.
Também deu curso a um programa de privatizações que, muitos anos mais tarde, terminaria com a entrega das reservas de petróleo as empresas norte-americanas. O saldo final foi transformar o país num sombrio corredor de passagem para o tráfico de drogas e entrega de mão de obra semi-escravizada que procura trabalho nos EUA e Canadá. O exército mexicano acabou transformado em força policial, submissa aos EUA, com um papel principal de auxiliar no combate ao crime organizado. As milhares de mortes, sequestros e desaparecimentos que marcam o cotidiano mexicano se compreendem a partir daí, do desastre social combinado com a perda de soberania.
Afundando sempre, o México perdeu o papel que sempre foi um trunfo importante de seus governantes — a condição de principal interlocutor da região junto aos Estados Unidos e o mundo desenvolvido, assumido pelo Brasil durante os governos Lula e Dilma.
Nessa situação, a vitória avassaladora de Lopez Obrador, obtida com um comparecimento.
PAULO MOREIRA LEITE
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