Os governadores Carlos Moisés, Wilson Witzel, Eduardo Leite, Romeu Zema, Renato Casagrande e João Doria em reunião em Belo Horizonte.
TER O MAIOR COLÉGIO ELEITORAL nas mãos é um grande trunfo dentro do jogo político partidário nacional. É por isso que a direita não tem medido esforços para evitar a eleição de um prefeito de esquerda na maior cidade do país. A campanha de Bruno Covas tem apelado para duas falácias nesta reta final: a de que o atual prefeito experiente e moderado, enquanto Guilherme Boulos seria um neófito radical.
A tropa inteira se mobilizou na repetição desse mantra. Em editorial intitulado “Não é hora para aventuras”, o Estado de S. Paulo declarou seu apoio a Covas e apresentou como os principais motivos a falta de experiência e o radicalismo do seu adversário. O editorial afirma que não dá para imaginar São Paulo sendo “gerenciada somente na base do entusiasmado ativismo dos movimentos sociais” e sob “influência de um programa revolucionário”.Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo
É legítimo que a empresa apoie em editorial o seu candidato de preferência, mas é espantoso que radicalismo e falta de experiência sejam motivos razoáveis para justificar o apoio ao tucano. Isso nunca foi um problema para o jornal que considerou “uma escolha muito difícil” decidir entre Bolsonaro, um golpista que nunca administrou nada, e Haddad, um político de perfil moderado que foi prefeito da maior capital do país e ministro da Educação por sete anos. Fica claro, portanto, que o Estadão não quer exatamente um prefeito moderado e experiente, mas um prefeito de direita.
João Amoêdo, do partido Novo, afirmou que “votar em Boulos é endossar ideias erradas, que nunca deram certo, iludem e no final trazem péssimos resultados. A maior cidade do Brasil não pode ser administrada por alguém sem nenhuma experiência de gestão”. Essa fala vem de alguém que declarou voto no extremista de direita que hoje nos preside. Naquele momento, votar em um defensor de torturador que dizia que iria “metralhar” adversários políticos não era “endossar ideias erradas”.
João Amoêdo, do Novo, disse que votar em Boulos é “endossar ideias erradas”. Ele declarou voto em Bolsonaro em 2018.
Foto: Bloomberg via Getty Images
Amoêdo é o principal nome de um partido que apoia o governo de extrema direita em mais de 90% das votações no congresso. Ele próprio, aliás, tentou ser presidente da República sem ter nenhuma experiência em administração pública. A hipocrisia chega a ser ostensiva.
Antes de ser expulso do Novo por falsificar currículo, Felipe Sabará, o candidato de Amoêdo no primeiro turno da eleição em São Paulo, era um sujeito cuja única experiência em administração pública foi uma breve — e desastrosa — passagem como secretário de Doria na prefeitura que ficou marcada pela ideia de querer alimentar moradores de rua com ração humana. Muito experiente e moderado, não é mesmo?
Experiência e moderação são duas cartas que a direita só joga na mesa quando lhe convém. A eleição de Bolsonaro, com o apoio dessa dita direita moderada, é a prova de que esses são valores dispensáveis a depender das circunstâncias. Os tais moderados de direita toparam eleger um defensor de miliciano cuja primeira experiência política foi durante a carreira militar, quando planejou explodir quartéis no Rio de Janeiro em um protesto por aumento de salário. Os delírios terroristas de Bolsonaro não assustaram tanto.
Na política partidária, a única experiência de Bolsonaro foi como parlamentar parasita que lançou mão de rachadinhas e funcionários fantasmas do começo ao fim da carreira. Bruno Covas e a direita brasileira toparam se alinhar a um radical de direita sem nenhuma experiência em cargos executivos.
Zema e Wilson Witzel nunca tiveram experiência política antes de se tornarem governadores, o que não impediu a direita de fechar com eles. O governador mineiro era um empresário que herdou a empresa da família. Apresentado pelo Novo como um liberal representante da renovação da política, hoje Zema está mais alinhado ao bolsonarismo do que ao seu próprio partido.
Quando Bolsonaro agitou manifestações golpistas, o mineiro foi um dos poucos governadores que não assinaram uma carta conjunta em defesa da democracia e em apoio aos presidentes do Senado e da Câmara. Também se recusou a assinar outra carta de governadores que cobraram ações efetivas no combate à pandemia. Já o ex-governador carioca, outro neófito na política, era um juiz que se elegeu graças ao bolsonarismo, mas logo rompeu com o presidente e passou a disputar o campo da extrema direita com ele. Não conseguiu nem terminar o mandato. Ambos foram duas apostas da direita que não tinham experiência política nem em grêmio estudantil.
A moderação de Covas é apenas uma questão de perspectiva. De fato, o tucano tem um perfil mais moderado que o de Bolsonaro e Doria, mas não hesitou em surfar a onda do radicalismo com eles em 2018. Por mais que Covas não tenha declarado voto em Bolsonaro, o tucano se aproveitou do Bolsodoria e depois voluntariamente tirou selfies sorridentes ao lado do presidente que sistematicamente ataca os outros poderes da República. Não é à toa que Celso Russomano, o candidato bolsonarista em São Paulo, declarou apoio a Bruno Covas.
Quando Doria chegou e rachou o PSDB, Bruno Covas preferiu ficar ao lado de João Doria em vez do de Alckmin. Não parece ter sido uma escolha difícil. Se havia algum traço de social democracia no PSDB, ele foi enterrado por Doria, que empurrou o partido ainda mais para a direita com o apoio de Bruno Covas. O “Bolsodoria” foi apenas um desdobramento natural desse processo.
No ano passado, ao se deparar com servidores municipais protestando contra a reforma da previdência, Covas sorriu e mandou beijinhos debochados para os trabalhadores que lutavam por suas aposentadorias enquanto caminhava escoltado. Esse é o candidato defendido como único representante do equilíbrio e da moderação.
O candidato à releeição Bruno Covas ao lado de Bolsonaro na Marcha para Jesus, em 2019.
Foto: Rebeca Figueiredo Amorim/Getty Images
Hoje, com Bolsonaro bastante rejeitado na capital paulista, o prefeito se esforça para descolar sua imagem da dele. O senso de oportunismo é formidável. Alguma dúvida de que Covas surfaria novamente a onda bolsonarista caso o presidente fascistoide estivesse bem avaliado entre os paulistanos? Bom, dá para dizer com tranquilidade que nem todo eleitor do tucano é bolsonarista, mas todo bolsonarista é eleitor de Covas nestas eleições.
Na campanha do segundo turno, Bruno Covas tem flertado com o mesmo anticomunismo alucinado que embala o bolsonarismo. Toda hora a sua campanha coloca o fantasma do socialismo na mesa, como se Boulos fosse implantar a ditadura do proletariado caso seja eleito. A esquerda governou por três vezes a capital paulista, com Erundina, Marta Suplicy e Haddad. Nenhum desses governos flertou com o radicalismo em suas gestões, mas todos sofreram com essa pecha antes de se elegerem.
“A esperança vai vencer os radicais”, disse Bruno Covas quando soube que Boulos seria o seu adversário no segundo turno. Esse radicalismo imputado a Boulos está embutido na histórica criminalização dos movimentos sociais. É assim que os direitistas brasileiros, em sua grande maioria, encaram os movimentos populares que reivindicam direitos garantidos pela Constituição. A isso chamam de radicalismo. Pelo que se sabe, Boulos nunca cometeu crimes, mas é frequentemente associado à bandidagem.
Essa criminalização dos movimentos sociais pela direita não nasceu com o bolsonarismo. Praticamente todos os ditos moderados de direita compartilharam e continuam compartilhando desse pensamento. Quando Boulos passou a escrever uma coluna na Folha, houve jornalista que cobrou o jornal por abrir espaço para o “banditismo”.Desacreditar Boulos como político pela sua falta de experiência administrativa é reduzir a prática política a uma técnica, minimizando outras dimensões muito mais importantes.
Boulos realmente não tem experiência na gestão pública. Mas qual é a experiência de Bruno Covas? Pouca. Foram três anos como secretário do Meio Ambiente de Alckmin e dois anos e meio como prefeito no resto do mandato de Doria. São cargos que ele conseguiu não pela experiência, mas pela força do sobrenome. É muito pouco para quem reivindica ser um candidato muito experiente. Experiência não se adquire por hereditariedade.
Até pouco tempo atrás, a cúpula tucana questionava a capacidade de Bruno Covas em assumir o comando da cidade. Quando Doria já dava sinais de que abandonaria o mandato no meio — o que já virou uma tradição do tucanato paulista —, pessoas importantes do PSDB se preocuparam com a possibilidade de Covas virar prefeito de uma cidade como São Paulo. Motivo? Falta de experiência em cargo executivo. A preocupação era tanta que parte da cúpula planejou criar um conselho para tocar a administração da cidade, o que transformaria Covas em um “prefeito decorativo”, conforme revelou a revista Piauí
Desacreditar Boulos como político pela sua falta de experiência administrativa é reduzir a prática política a uma técnica, minimizando outras dimensões muito mais importantes. Política é, sobretudo, representatividade. Na democracia, os governantes são eleitos através de votos, e não de concursos públicos que filtram os tecnicamente mais preparados. Não se aprende a fazer política com um cursinho de gestão pública do Renova.
Boulos tem a riquíssima experiência política adquirida como líder de um movimento social importante. Buscava atender demandas populares, mas sem se abster de negociar e dialogar com autoridades públicas — fato atestado por um ex tenente-coronel que negociou com Boulos em casos de reintegracão de posse. Segundo o militar aposentado, o psolista é “uma pessoa ética, ponderada que cumpre a palavra, que busca o diálogo e busca o entendimento”.
O radicalismo e a falta de experiência de Boulos são falácias que a direita joga na mesa para tentar se manter no poder. O fato é que enquanto Boulos representa os interesses dos mais pobres, Covas busca dar continuidade à representação dos interesses da elite paulistana identificada com Doria. A mesma elite que elegeu Bolsonaro.
Foto: Gil Leonardi/Divulgação
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